sexta-feira, novembro 07, 2008

"Doe uma laranja, lá lá lá lá lá, mas se for bonzinho doe duas"


Aos 11 anos de idade, fiz minha primeira campanha de sucesso. Uma campanha agressiva, de resultado, bem sucedida em recall, share of mind, market share e outros estrangeirismos publicitários que convergem em uma única tradução: deu certo. É com satisfação que lhes apresento a vencedora e polêmica campanha da laranja.

Infância é assim: brincamos de esconde-esconde, pega-pega, polícia e ladrão, baleado, garrafão, jogamos vídeo-game, futebol, papel higiênico molhado nos carros que passam na rua e, quando não resta mais nada pra fazer - após fazermos tudo -, chamamos de tédio. Foi justamente num momento como este, de ócio criativo, que a idéia da campanha tomou corpo.

Estávamos eu e Daniel na casa de Juninho, os três completamente de pernas pro ar. Um deitado no chão olhando pro teto, outro fitando a TV sem prestar a menor atenção no programa que estava passando e o outro (certamente não era eu, por conta da minha educação britânica) tirando catotas do nariz e lançando-as contra a parede através de petelecos.

- Deu fome... – disse Daniel, interrompendo o longo silêncio.

- É, também estou com fome. – concordei.

- Vamos ver o que tem na cozinha. – disse o dono da casa enquanto saía lentamente de sua inércia.

Juninho explorou primeiro a geladeira. Com a porta do eletrodoméstico aberta, passeava lentamente os olhos nas prateleiras, uma a uma. Pegou um queijo e disse para si mesmo:

- Não tem pão.

Devolveu o queijo, deu outra olhada e, com as mãos vazias, fechou a porta. Abriu o congelador logo acima. Nada de sorvete ou qualquer sobremesa, apenas cubas de gelo. Para nosso azar, aproximava-se o dia do mercado do mês em sua casa. Ou seja: parcas, quase nulas, as opções de lanches. Ainda tentou a despensa. Arroz, feijão, milho em conserva, palmito, caldo Knorr, sabão em barra, detergente. Nada!

- Tem laranja... – disse Juninho apontando desanimado para a fruteira em cima da mesa de almoço.

Laranja? Só lembro de ter chupado laranja quando era pequeno, nas festas juninas da escolinha. Laranja só em suco e olhe lá, eu era movido a Coca-Cola. Daniel fez uma última tentativa:

- Não tem um biscoito aí não?

- Não. Tem laranja... – reforçou Juninho.

Era o jeito. Cada um pegou uma fruta. Após as lavarmos, o dono da casa gentilmente nos cedeu uma faca. Sem prática alguma com o instrumento cortante, levamos uma década para conseguir tirar toda a casca. Demora que só fez aumentar a fome. Juninho como sempre, o mais precoce, conseguiu deixar a laranja só na casca interna, aquela parte branca. Dividiu-a em duas bandas com um corte preciso, prenúncio de sua carreira bem sucedida de cirurgião. Ao levar aquela polpa amarela e brilhante à boca, Juninho fez uma cara de satisfação como se estivesse comendo uma barra inteirinha de Toblerone. Àquela altura, eu e Daniel tínhamos nas mãos mais cascas do que fruta. Na tentativa de chegar na parte interessante, dávamos inábeis talhos que consumiam nossa preciosa merenda.

Conseguimos. Juninho tinha razão. O silêncio dos três na cozinha revelava a delícia que é chupar uma laranja. Aliás, não era bem silêncio, era um barulho irritante, como se fosse um beijo de carnaval. Sluuurp, glup, shliii, esses sons, mais ou menos. Se não fosse pela nossa pouca idade e alguém visse a avidez com que sorvíamos aquele sumo, diriam que a gente tinha fumado maconha e aquilo era larica.

Terminada a meleira geral em cima da mesa, instantaneamente, cada um pegou mais uma fruta. Dessa vez, eu e Daniel ignoramos a casca e só dividimos as bandas com a faca. A partir da terceira rodada, descobrimos a espetacular maneira de cortar a laranja em cruz. Desse jeito, assava muito menos a boca.

Quarta rodada, quinta, e acabaram as laranjas da casa. A fome não havia passado. E o pior: aquele vazio no estômago tinha se transformado em desejo por laranja. Não queríamos sanduíche de queijo, nem biscoito recheado São Luiz, nem Nescau, nem sorvete, nem mini-pizza, nem geléia de mocotó. Nem mesmo Toblerone servia. Só laranja.

Fomos até minha casa e nos deparamos com sete laranjas no cesto. As dividimos irmanamente. Duas pra cada, a sétima cortada em cruz, um gomo pra cada e o último deles no zerinho ou um. Comemos, sujamos tudo mais uma vez e partimos para a casa de Daniel em busca de mais laranjas. Incrível, aquilo era muito bom, mas não enchia a barriga.

No elevador, encontramos Fernando e Léo. Contamos a eles qual era a nova sensação do prédio e pedimos a colaboração dos dois já que o estoque de laranjas de nossas casas tinha ido para o espaço. A recepção da idéia não foi das melhores.

- Chupar laranja? Se ainda fosse para jogar na casa de Dr. Encrenca... – disse Fernando, referindo-se a um vizinho chato.

- Por mim vocês ficam com todas que acharem lá em casa. – disse Léo, desdenhando de nossa mania repentina.

A indiferença dos dois durou pouco. Logo eles já estavam nos ajudando a finalizar as cítricas frutas de suas próprias casas com mais gula que nós, os pioneiros. Então, um grande problema ameaçou tirar nossa tranqüilidade: já não havia mais fontes de laranjas. Após um pequeno início de tumulto, verdadeira síndrome de abstinência, as coisas foram começando a clarear.

- Por que não vamos de apartamento em apartamento pedindo laranjas? – Daniel deu seu lampejo de solução.

- Claro que não. Sou lá mendigo pra ficar indo de porta em porta pedindo comida? – exasperou-se Fernando, o orgulhoso da turma.

- Podemos fazer melhor: vamos criar a campanha da laranja. – disse eu, triunfante, pai-coruja da própria idéia.

Meus amigos lançaram em mim um olhar de peixe morto. A experiência mostrava que quando eu tinha estalos assim, costumava sobrar para alguém ou para todos. Acalmei o grupo apresentando o planejamento da campanha:

- Pegamos o toca-fitas de Daniel e gravamos uma mensagem pedindo doações de laranjas. Depois, colocamos o aparelho na frente da porta do apartamento junto com uma cesta vazia, apertamos play, tocamos a campainha e nos escondemos na escada.

Devo ter sido persuasivo. Por algum milagre eles toparam no ato. Fomos até a casa de Daniel e fizemos a gravação. O texto foi meu, a locução de Juninho e a trilha, um coro quase beneditino, do resto do grupo. Não repare, mas o resultado foi mais ou menos assim:

- (coro ao fundo. Locução com voz impostada em tom sério) Atualmente, a fome é uma das principais causas de morte no mundo inteiro. E as crianças do Parque das Árvores estão com fome. Por favor, doe laranjas para combater esse mal. Basta depositá-las no cesto que se encontra ao lado do aparelho de som. Muito obrigado.

Como se já não bastasse a locução, entrava um jingle de gosto duvidoso:

- Doe uma laranja, lá lá lá lá lá, mas se for bonzinho doe duas.

Nem rima tinha.

Existe uma máxima na publicidade que diz que propaganda pra dar resultado tem que ser ou muito boa, ou muito ruim. Adivinha qual era o caso da nossa? Só sei que a campanha deu certo: no terceiro ou quarto apartamento já estávamos com o cesto cheio de laranjas.

Ainda celebrávamos a grande quantidade de frutas recolhidas quando sofremos um infortúnio. Deixamos o som na frente de um dos apartamentos e, como de costume, nos escondemos na escada. De repente, no meio da locução, o som foi interrompido e então ouvimos a porta bater. Voltamos para olhar e só encontramos a cesta. Haviam roubado o aparelho de Daniel.

Tocamos várias vezes a campainha. Enquanto batia na porta sem parar, Daniel gritava “devolve meu som, devolve meu som!”. Depois de alguns minutos, já saturado da confusão na entrada de sua casa, Alexandre, o revoltado adolescente de 16 anos responsável pelo furto, abriu a porta e colocou o som diante de nossos pés através de movimentos bruscos.

- Doação de laranjas?! Vocês são idiotas, é? – Perguntou irritado e em seguida bateu a porta com força na cara da gente.

Após tantas histórias nossas que, no mínimo, desafiaram o bom senso e jamais obedeceram qualquer lógica, percebo que a áspera pergunta de Alexandre ainda ressoa em minha cabeça. Mas, confesso: ainda não encontrei resposta para ela.

21 comentários:

Paula disse...

Pedro, já fui Rainha da Pipoca no colégio por causa da minha imbatível campanha. Minha mãe fazia brigadeiro, cachorro quente e pipoca e eu vendia na hora do recreio. Sem contar as inúmeras rifas que também consegui vender entre os vizinhos! Agora, nunca pensei numa campanha para doação de laranjas...

beijos

p.s. esqueci de te responder, meu colega de trabalho não lê o meu blog!

Lilian Devlin disse...

Pedro,
Não era só o Juninho que desde "tenra idade" já demonstrava que seria o bamba na profissão que escolheria no futuro, vc tbm!
Só ficou faltando contar se vocês deram conta de comer todas as laranjas arrecadadas e se depois disso, não ficaram pelo menos uns 6 meses sem ter nem vontade de olhar para outra... Overdose de laranja é ford! rs
Bjs!

eu... disse...

Oi Pedro!

Então quer dizer que tu 'nasceu' publicitario?rs
Eu to aqui imaginando a saga de vcs em busca de mais laranjas e rindo muito!

Bom final de semana!beijos

Vivz disse...

Além de achar sua ironia bastante refinada, acho seu blog terapêutico. Morro de rir!
Beijo.

Anónimo disse...

Geléia de Mocotó você lembra de que?? hahahahaha
Realmente Peu, com essas idéias de infância tinha que dá em alguma coisa.
Vender geladinho na praia de Mar Grande, era uma especialidade nossa, heinn!!!
Tenha medo desse trio...

Dani disse...

Doação de laranja, huahuahuahua
só vcs mesmo...
Acho q vc devia contar uma história de Ró, são tantas!
Beijoss

Dani disse...

Doação de laranja, huahuahuahua
só vcs mesmo...
Acho q vc devia contar uma história de Ró, são tantas!
Beijoss

Dedinhos Nervosos disse...

haahhahah
Que ótimo!!! Campanha impactante, mais direta do que mala-direta - mas sem ser mala - e com pouco investimento. Quer vir trabalhar aqui? Adorei! rs
Bjos!

Anónimo disse...

Caralho pedrão!

auhahuahuauh por essa eu nao esperava! Doação de laranja é foda!

aaHUAHUhuAhUA

ABRAÇOO!

Luciana disse...

hahahahahaha
Muito engracado! O curioso eh que antes de ler eu tava cantando ''as metades da laranja, dois amantes dois irmaos...'' (eh brega, mas eh legal)!

Beijos!

Anónimo disse...

hahahhahaha, ótima idéia... criança é demais! Beijos

Pedro disse...

Paula: quer dizer que você ganha dinheiro desde pequena... e, além da mão-de-obra, imagino que os custos de produção ficavam a cargo de sua mãe também. Bonito, não?
Seu apelido agora é Paula 100% lucro.
Bjo!

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Lilian: acredite, a gente conseguiu acabar com todas. E não só ficamos 6 meses sem conseguir olhar uma laranja, como também estamos até hoje sem pegar gripe.
Bjo!

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Lê: acho que não nasci publicitário, até porque sonhava em fazer medicina. Mas talvez a desastrada - refiro-me à forma, não ao resultado - campanha da laranja talvez tenha sido um estímulo a descambar para essa área.
E você, não tem uma laranja aí pra mim não?

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Vivz: Obrigado! Mas quando eu crescer, quero ser igual a você.
Bjo e parabéns pelos textos e pelo pai que tem.

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Ró: geléia de mocotó só vende até hoje porque você compra. No dia que você parar de comprar, eles param de fabricar. Quando a gente era pequeno, se deixassem, você só comia isso. E agora que você descobriu que geléia de mocotó é feita do joelho do porco?
É, acho que vão parar de fabricar...
Bjo!

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Dani: acho que vou contar a história da cadeirinha de balanço. O que acha?
Bjo!

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Anna: quero trabalhar aí sim! Dar banana aos micos no fim da tarde, jogar sinuca com você e, se der tempo, matar alguns jobs.
Bjão!

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Rueda: seu boca-suja. Não vá chupar essa minha idéia na Idéia 3 não.
Abraço!

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Lu: Fábio Jr, hein? É isso que toca aí nos pubs? Melhor vocês voltarem pra cá, tem rolado bons pagodes por aqui, coisa fina. E Mush, como vai? Adorei o post!
Bjo!

Anónimo disse...

Poxa, pena que vc não morava em meu prédio, Peu...
Qdo eu era criança escrevia livros, datilografava, desenhava, xerocava, coloria todos eles, e é claro, encadernava com meu super grampeador ultra-flex...
Bem, o problema é q qdo eu descia pra vendê-los ningue´m se interessava, rsrsrs...fiz uma coleção de 10 livrinhos, mas minha carreira de escritora de best sellers terminou aí...rsrs
Faltou uma boa campanha como a sua!
Adorei a história...só p variar!! Bjão

Anónimo disse...

Oi Pedro:
Só hoje consegui ler mais este capítulo de sua biografia,nada mal...
Fiquei imaginando a cena:um bando de moleques rindo de não sei o que ,e aprontando todas.
Pelo jeito,timides nunca foi um problema em sua vida,hahaha...
Qto a foto que te mandei,é claro que sou a mais bonita,e nem sempre carrego comigo um forceps ou bisturi,afinal ,tbm sou gente!
Bjão ,Carla .

Anónimo disse...

Pedro,
Esses textos seus me fazem um bem enorme...são divertidos, bem escritos e o melhor me fazem sorrir muito.
Beijos,

Kakaya disse...

Eeeei!
Me desculpe a demora!Só agora vi seu comentário no meu blog!rsrsrsr!Então vim aqui ler um pouco e retribuir a visita!Vou adicionar, ok?
Sobre o seu texto, eu adoro laranja, mas até hoje não sou naaaaada boa na arte de descascar, então juro que só caso com quem souber!kkkkkkkk!

Larissa Fonseca disse...

Pedro, muito bom seu blog!!! Ri demais com as histórias, demais mesmo! ahuahuahuahua

Beijo e continue escrevendo!!

Pedro disse...

Silvinha: a carreira acabou cedo porque eu não morava no seu prédio. Caso contrário ou eu compraria os livros ou então faria uma campanha tão ruim e vendedora quanto a da laranja.
Bjo!

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Carla: eu ainda não tinha visto por esse lado. É isso mesmo, essa é a minha biografia... fiquei com vergonha. Imaginei que você era a mais bonita mesmo. Rs.
Bjo!

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Márcia: que bom saber que você tem acompanhado as histórias. Pra mim, a maior recompensa por ficar até tarde escrevendo é saber que eu coloquei um pouco de molho no dia de alguém.
Bjo!

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Karlinha: então devolve a aliança. Não vamos poder casar.
Bjo!

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Larissa: é Lari de Rueda boca-suja? Rs. Que bom que gostou! Vou continuar escrevendo, pode deixar. Apareça.
Bjo!

Anónimo disse...

Continuo sendo sua fã, adoro seu blog!
Apareça mais vezes aqui em casa...
Beijos

Anónimo disse...

Espero que o menino da "catota" seja Juninho! hahahaha

Beijos Pedroooo

aeronauta disse...

Gente, mas você é muito engraçado e criativo!!!!