segunda-feira, agosto 01, 2011

Importar dos Estados Unidos é bom. Mas, deportar para lá, é melhor.

31 C. Esse foi o assento que, estrategicamente, escolhi no aeroporto de Dallas para voltar ao Brasil. Acabei pegando esse lugar bem no fundo da aeronave porque ele ficava na fileira do meio, entre os dois corredores, com mais outras duas cadeiras, ambas vazias. Assim, eu que ainda não aprendi a dormir sentado, poderia deitar e pegar no sono naquele voo noturno da American Airlines que, paradoxalmente, faz seus passageiros conhecerem o inferno justo no céu.

Como fiz o check-in com certa antecedência, ainda havia o risco de colocarem pessoas nos dois assentos ao meu lado. Então, entrei no avião e fiquei torcendo. Vibrava calado a cada novo passageiro que entrava e se dirigia às fileiras antes da minha. Tudo indicava que aquela seria uma viagem de primeira classe pagando classe econômica.

Então, como vi o avião enchendo e ninguém chegando para ocupar as duas cadeiras seguintes à minha, pulei para o lugar do meio, deixando um assento vazio de um lado e outro assento vazio do outro. Assim, afastaria algum esperto que visse duas cadeiras vazias juntas e mudasse de lugar, passando a ser a meu vizinho.

Eis que, só para provar que alegria de quem não tem dinheiro para pagar primeira classe dura pouco, o último passageiro a entrar no avião era um maldito americano dono do assento na outra ponta da minha fileira. Era um cara de seus 55 anos, gordinho, pele branca-avermelhada, típico americano, cabelos grisalhos que um dia com certeza foram amarelos. O cara entrou esbaforido falando no celular. Enquanto a aeromoça insistia para que ele desligasse o telefone, o sujeito explicava para a pessoa do outro lado da linha que havia perdido o voo para São Paulo e que pousaria no Rio. Ordenava que alguém fosse busca-lo no aeroporto. Fazia um tipo arrogante, provavelmente um yuppie que figurou nos anos 80 e que não devia estar nem um pouco feliz por estar deixando o seu país tão maravilhoso para ir até uma selva cheia de macacos e leões andando soltos pelas ruas sem asfalto.

Então, a partir daí, seguiu-se uma sucessão de caprichos e provocações, minhas, dele e de um comissário, que transformaram a nossa viagem em um martírio a 10 mil pés de altura. Totalmente despido de defesas, tentarei demarcar, imparcialmente, nossos erros. Depois, amigo leitor, fique à vontade para concordar ou não.

Bom, depois de ser condenado a passar a noite sentado, ainda me restava uma esperança. Na verdade, não era bem esperança, era apelação. Levantei e fui falar com o comissário de bordo. Em seu crachá, li “Robert”.

- Robert, boa noite. Queria te pedir uma coisa, se fosse possivel: tenho problema crônico de coluna e, como tô vendo que a classe executiva está vazia, gostaria de saber se é possível mudar para um daqueles assentos. É que não posso ficar muito tempo na vertical – menti.

Eu errei.

Com os olhos revirando, o pescoço rígido e a voz metálica, sinais claros de pouca masculinidade, o comissário respondeu com a simpatia clássica dos funcionários da American Airlines:

- Não será possível.

Ele errou.

- Mas eu tenho ‘spinal disease’ e a executiva está vazia! – insisti.

Eu errei.

- It’s not my problem – Robert girou o corpo sobre o próprio eixo, me deu as costas e foi embora.

Ele errou.

Retornei ao meu lugar e me mantive na cadeira do meio, ao lado do sujeito que embarcou por último, mesmo não sendo o meu assento. Uma tentativa de forçar um certo desconforto para que ele procurasse outro lugar no avião.

Eu errei.

Então, meu vizinho virou para mim e, de forma ríspida, ordenou: - pule para a cadeira do lado que nós dois ganhamos mais espaço.

Ele errou.

Eu respondi que não iria mudar de lugar. Irritado, ele perguntou o por quê. Mentindo e em tom pouco amistoso, respondi: - porque eu comprei esse lugar.

Eu errei.

Então, ele abriu a bandeja como quem buscava arrancá-la da poltrona da frente, pegou seu notebook e começou a digitar. Descarregou raiva no teclado. A cada palavra escrita, dava leves e intencionais cotoveladas em mim como quem diz: - você não está procurando por desconforto? - como bom americano, o sujeito declarou guerra contra mim.

Ele errou.

Peguei também o meu notebook. Enquanto ele inicializava, fiquei imaginando como eu poderia incomodar aquele típico yankee que o resto do mundo ojeriza. Lembrei que tinha uns vídeos de “Partoba” (clique aqui e veja como o áudio é agradável), abri os arquivos e fiquei os assistindo sem fones de ouvido.

Eu errei.

Depois de disputarmos aos solavancos o apoiador de braço da cadeira, foi servido o jantar. Enquanto cortava a sua carne, para me provocar, o americano fazia questão de abrir suas asas como a águia símbolo de sua terra.

Ele errou.

Percebi que o seu pacote com o travesseirinho e coberta estava no chão. Dei um chute discreto com o bico do tênis e fiz os dois pararem na fileira da frente.

Eu errei.

O cara apelou: inclinando o corpo para o lado, soltou um pressurizado e sonoro flato. Desses que parecem um freio de ônibus. Em seu rosto, estampou-se um cínico sorriso de canto de boca.

Ele errou.

Não aceitei ficar em desvantagem e, ao vê-lo fechando os olhos e ajeitando-se na cadeira para dormir, peguei uma revista de bordo e acendi a luz.

Eu errei.

Após uma noite terrível, o desconforto no seu nível mais desumano, acordamos com o comissário servindo o café da manhã, tão pobre e injusto quanto o sono que tivemos. Foi também entregue o formulário para a declaração de bens da receita federal, todo em português. Preenchi os campos solicitados e, quando ia fechar a minha mesinha, o americano, surpreendentemente, puxou o formulário de minha mão para ler o que eu tinha escrito e copiar o que ele não havia entendido. Depois, jogou o papel abruptamente sobre mim.

Ele errou.

Após o pouso, enquanto o avião ainda taxiava na pista e o piloto, em inglês, dava as boas vindas à cidade maravilhosa, meu vizinho de cadeira resolveu verbalizar sua irritação:

- É por isso que eu não gosto de vir a países subdesenvolvidos. Vocês merecem continuar no terceiro mundo... bando de gente mal educada e corrupta. Não é difícil entender porque não são bem-vindos ao meu país .

Apesar de certa coerência no discurso, ele errou. E em solo brasileiro.

Desembarcamos. Pegamos uma fila gigantesca na imigração de volta na polícia federal por conta de dois outros voos vindos dos Estados Unidos que pousaram junto com o nosso. A fila dos brasileiros andava mais rápido que a dos estrangeiros, ainda que todos fossem atendidos nos mesmos guichês. Mirei o americano que havia roubado minha cama e paciência durante aquela noite longa.

- Próximo... – ordenou, com voz arrastada, típica de servidores públicos, o agente da PF.

Caminhei com certa pressa até o guichê. Haviam dois gringos na frente do americano. Eu procurei não perdê-lo de vista.

- Bom dia... – disse o agente enquanto recebia meu passaporte.

- Apesar de todo o cansaço, bom dia – respondi.

- Esses voos da American Airlines são desconfortáveis... – ainda que com certa letargia, experimentei novamente a simpatia brasileira. Era bom receber “bom dia” em português.

- Bastante desconfortáveis. Olha, oficial, me sinto no dever de falar sobre algo que ocorreu no avião... afinal, nem todo estrangeiro que vem para cá, vem bem intencionado. Aquele americano ali atrás, o terceiro da fila, veio durante o voo tendo uma conversa muito estranha com um dos comissários. Ele disse que trabalha para a indústria farmacêutica americana e que está indo para a Amazônia pegar extratos medicinais de nossas árvores para patentear nos Estados Unidos. Procurei ficar mais atento à conversa e ouvi ele dizendo também que é a favor de uma guerra contra o Brasil, já que toda hora a gente encontra um novo poço de petróleo no oceano, o lance do pré-sal. Falando sobre nós, brasileiros, os dois riam dizendo que todo homem aqui é corno, pois toda brasileira é devassa, usa biquíni minúsculo e rebola como prostituta... no final, já chegando aqui, ele comentou que vai aproveitar os últimos dias de sua viagem para fazer turismo sexual em Natal. Aí o comissário disse para ele que tinha bons contatos de prostitutas aqui no Rio, algumas delas adolescentes ainda, mas que não se preocupasse com isso, pois o Brasil é um país sem lei e para resolver qualquer problema com a polícia era só dar 50 reais de propina. Então, o passageiro anotou alguns telefones em sua agenda e desembarcou.

Enquanto lançava o número do meu passaporte no sistema, sem tirar os olhos da tela do computador, o agente perguntou:

- Blusa verde e calça marrom?

- Sim – Respondi depois de olhar para confirmar.

- Você sabe o nome do comissário? – perguntou o agente enquanto devolvia meu passaporte.

- Sei sim, Robert.

- Ok. Bem-vindo de volta.

Fui saindo lentamente, cruzei com o americano em direção a um dos guichês que, apressado, tropeçou na maleta que eu vinha puxando.

- Idiot... – resmungou rangendo dentes.

Sorri um acolhedor sorriso brasileiro. Então, caminhando tranquilamente, olhei para trás e pude ver o agente tomar o lugar do colega que iria atender o americano no guichê, negar a sua entrada no país e explicá-lo que ele voltaria no mesmo voo que tinha chegado aqui. Sem mais explicações. Enquanto dois policiais conduziam o descontrolado sujeito, ainda ouvi o agente dar uma ordem a outros três que localizassem na fila da tripulação um comissário com o nome Robert.

Agora, de posse de todos os fatos, peço que responda sinceramente:

Eu errei?

sexta-feira, abril 29, 2011

Ainda bem que Kate e William não convidaram Bob

19:45. O casamento começava às 20 horas. Eu era padrinho e ainda nem tinha saído de casa. Lutava bravamente com a gravata que, àquela altura, vencia a batalha com folga. Sim, ora com folga, ora com aperto. Na realidade, o problema não era bem o nó, isso eu já havia resolvido; a questão era o comprimento da gravata que, ou ficava muito grande, ou ficava ridiculamente pequena.

Para aumentar meu desespero, Letícia, no auge do nosso atraso, insistia em retocar a maquiagem. Tentei ignorar o insistente toque do meu celular. Não consegui: era Bob, que, pelo número de tentativas, dava indícios de tratar-se de assunto importante. Do outro lado da linha, uma voz ofegante:

- Fio, você sabe dar nó de gravata?

- Depende. De que tipo? – respondi apressado.

- Daquele maior. Já fiz e desfiz mil vezes e ele sempre fica pequeno. Vou acabar chegando atrasado!

- E eu que sou padrinho, Bob? Vou chegar depois da noiva. Vamos fazer assim: pelo telefone não vai dar pra resolver nada... vá com o seu nó do jeito que está e quando chegar lá a gente tenta dar um jeito.

Paletó arremessado no banco de trás, entramos no carro apressadamente. Acelerei de forma que, em poucos instantes, Letícia desistiu de retocar a maquiagem pelo espelhinho do para-sol. Cheguei na igreja de Santo Antônio da Barra ao mesmo tempo que Bob. Fiquei surpreso ao vê-lo - não pelo terno bem cortado, seus reluzentes sapatos de bico fino, cabelo empastado, enfim, seu layout italiano, mas pelo nó de sua gravata. Sim, ele havia me dito que o nó estava pequeno, mas eu não imaginava que o objeto da preocupação de Bob havia ficado mais discreto do que um nó de cadarço de tênis. Na gola, um vazio tão grande, mas tão grande, que, em termos psiquiátricos, seria uma depressão profunda. Sério, o nó conseguia ser menor do que o botão que fechava a camisa.

A gargalhada conseguiu manter-se contida exclusivamente pelo fato do ponteiro pequeno do relógio ter estacionado no 8. Correria escada acima e a fiel promessa de, ao fim da cerimônia, tentar ajustar aquilo que, com muita boa vontade, podia ser chamado de nó de gravata.

De cima do altar, a atenção que eu dispensava às piadas e extroversões do padre eram divididas com a visão de um sujeito alto no fundo da igreja, realizando movimentos frenéticos à altura do peito e da cabeça, destoando dos corpos estáticos dos convidados, voltados todos eles para os noivos. De início, imaginei ser um beato a se benzer diante das palavras do ministro de Deus. Mas, não: era Bob, mais preocupado com o laço do que com o enlace.

Ainda no rito de saída dos padrinhos da igreja, aquela escolta de passos vagarosos feita aos noivos, fui abordado por Bob que, quebrando o protocolo, meteu-se no meio da fila, segurou firme no meu braço e murmurou pausadamente:

- Não esqueça da minha gravata.

Seguimos todos para a festa. Lá, os noivos aguardavam pais e padrinhos para um brinde. Bob, inquieto, rondava a cena com sua gravata excêntrica. Durante as fotos, mesmo estando fora da cena, Bob levava a mão ao pescoço buscando esconder sua fragilidade. Após formalidades, nova interceptação e súplica:

- Vamos ali comigo no banheiro! Não dá pra ficar na festa assim.

Compadecido com a situação do meu amigo e diante de uma gravata que desaparecia diante da gola completamente abotoada e vazia - lembrando um crente -, avisei a Letícia que iria com ele ao banheiro. Com Bob já adiante, movido a passos rápidos rumo ao local de sua suposta salvação, eis que chega um cliente do trabalho. Sem notar minha parada brusca, seguiu Bob aos trancos em meio aos convidados. O cliente me travou naquele ponto e eu não via possibilidade de deixá-lo falando sozinho e seguir atrás de meu amigo. E nem precisou. Bob retornou e pediu um aparte:

- Você é escroto, é? Minha gravata!

Pedi licença e continuei a procissão rumo ao banheiro. Dessa vez, chegamos no destino. O cenário: um monte de marmanjos lutando com seus ternos e órgãos genitais a fim de não se sujarem de xixi. Fiquei preocupado com aquele povo todo no recinto. Afinal, um homem ajudando outro com a gravata dentro de um banheiro não seria das visões mais másculas.

Para fugir dos olhares curiosos, só vi uma solução: tentar resolver o problema do nó da gravata de Bob dentro de um dos boxes. Primeiro entrou um. Depois, após constatar que ninguém observava, entrou o outro. Tom de vozes baixo, quase sussuros, iniciou-se o diálogo:

- Por que ficou tão pequeno assim?

- Sei lá, eu tentei várias vezes e nada. Será que você consegue deixar ele maior? – Bob retrucou um pouco mais alto.

Percebi que as conversas que vinham dos mictórios emudeceram de repente. Baixei novamente o tom de voz:

- Vou tentar...

Manobrei a gravata em busca de um nó mais decente. Bob não colaborou com a discrição e praticamente deu um grito:

- Peraí, porra, agora tá grande demais!

Mais silêncio ainda no banheiro. Ouvia-se apenas o som do xixi alheio batendo nas bolinhas de naftalina. Fiz sinal pra Bob falar mais baixo. Tentei novo nó. Bob não respeitava o volume dos comentários, muito menos os trocadilhos:

- Ficou pequeno de novo, tá vendo? Se você não virar assim pro lado ele fica pequeno...

Querendo terminar logo com aquele constrangimento no banheiro, fiz sinal para que ele tirasse a gravata, assim, eu tentaria dar o nó em mim mesmo e depois passaria a gravata para ele.

- Você quer que eu tire? Eu tiro... – infelizmente, disse Bob.

Fazendo verdadeiro origami com a gravata, cheguei a um resultado que me parecia satisfatório. Retirei a peça do pescoço e passei para ele. Irritadiço, Bob respondeu:

- Tá muito apertado, Pedro. Assim não vai passar da cabeça!

Ouvi risos maliciosos do lado de fora do box. Alarguei o maldito nó e lhe devolvi novamente a gravata. Não satisfeito com o papelão, Bob, feliz com o resultado, soltou aprovativo:

- Ahhhh!

Tudo o que eu mais queria e não queria ao mesmo tempo era sair daquele minúsculo lugar. Eu e Bob, um cara de seus 1,90 de altura, dentro de um box de banheiro, era, no mínimo, complicado de explicar.
Sem pudor algum, Bob fez menção de abrir a porta. Eu o pedi que aguardasse. Seria melhor esperar o banheiro esvaziar um pouco mais para sairmos. Bob não concordava: estava completamente suado e ansioso para aproveitar a festa, coisa que seu nó de gravata não havia permitido até aquele momento. Após ainda fazer algum barulho dentro do cubículo, concordou. Combinamos então de sair um após o outro.

O som ambiente no recinto, enfim, diminuiu. Girei cuidadosamente a maçaneta e saí. No mictório, corpo curvado para mim, estava o novo namorado da melhor amiga de Letícia, sujeito que eu havia conhecido naquele mesmo dia.

- Cerimônia longa, não? – ele puxou papo.

- Nem me fale – sorri um sorriso amarelo.

Então, bem diante do cara, sai Bob de dentro do mesmo box que eu havia acabado de sair. Suado feito um cuscuz, segue sem cerimônia para o espelho, ajeita o cabelo, joga água no rosto e deixa o banheiro.

- Te espero lá fora – disse enquanto passava pela porta.

O barulho do xixi do cara subitamente interrompeu. Travou seu esfíncter. Ele desviou o olhar de mim e mirou o infinito nos azulejos diante de si. Silêncio sepulcral, daqueles que dá para ouvir o barulho dos grilos do lado de fora. Também mudo, me retirei.

Fui caminhando lentamente pela festa, a cabeça maquinando as interpretações do cara. As interpretações, não. “A” interpretação - não havia outra. Quando vou me aproximando do grupo onde estava Letícia e a melhor amiga, Bob surge com uma taça de prosseco na mão ao tempo em que o sujeito do banheiro também resolve aparecer.

As meninas perguntam:

- Que demora foi essa, hein?

Imediatamente, de bate pronto, eximindo-se de qualquer culpa, a suposta testemunha responde em voz e cabeça baixas:

- Eu estava fazendo xixi...