sexta-feira, abril 23, 2010

O porteiro, o “estrupador” e o sofá.

Que o ofício de porteiro de prédio é de tremenda importância em nossas vidas, ninguém pode negar. São eles que zelam pelo nosso patrimônio, que decidem quem entra e quem sai, que barram ex-namorados inconformados, que amenizam a carência das empregadas domésticas, que resolvem o que o síndico jamais resolve, que distribuem Playboy entre as crianças, que te sacaneiam quando seu time perde, que sabem quem é viado e quem não é. Enfim, que são verdadeiros guardiões de segredos comprometedores dos condôminos - e, talvez por isso, os chamamos de “zelador”.

Mas, também são esses sujeitos os responsáveis por informações truncadas através do interfone.
Uma vez, por exemplo, eu estava fazendo trabalho de grupo de faculdade quando Antônio, porteiro de alcunha “Tonho”, interfonou para meu apartamento anunciando que “Seu Bilixo” estava subindo. Eu respondi que não era possível, já que não tinha nenhum amigo com esse nome e nem mesmo acreditava que existisse um pai capaz de batizar seu filho de Bilixo. Ele insistiu:

- É Bilixo mesmo, perguntei pra ele já. Ói, vou perguntar de novo. [Assovio] Ei, qual o nome do senhor mesmo? Ói, deu pra ouvir daí? Bilixo.

- Ô Tonho, se é Bilixo o nome dessa criatura, não tá vindo aqui pra casa. Deve ser engano ou você está ouvindo errado. Não tá vendo que ninguém pode se chamar Bilixo? – respondi.

Tonho respondeu impaciente, atropelando palavras:

- Mas homem, eu nãotôdoidonão! Já perguntei pra mais de cinco vezes, o moço já tá chateado, e é seu amigo, pode acreditar, porque eu já vi ele chegar com você outro dia, o carro dele tá atrapalhando aqui a passagem, dona Lucinha tá querendo sair e Doutor Marques tá querendo entrar, faço o quê, posso liberar o rapaz?

- Tonho, por favor, peça a ele pra encostar o carro e ir até o interfone – tentei acabar com o mistério de Bilixo de forma segura.

Após alguns instantes, uma voz do outro lado do interfone mostrava irritação:

- Ô velho, você vai me deixar aqui do lado de fora do prédio, é?

- Quem tá falando?

- Sou eu, rapaz, já disse mil vezes pra seu porteiro! Vinícius.

Mas, essa história não é sobre Tonho, Vinícius ou Bilixo. É sobre outro porteiro que deixou sua marca no Parque das Árvores: Gidevaldo. É sobre Gidevaldo, o “estrupador” e o sofá.

Numa bela tarde qualquer, em um dia de meio de semana qualquer, tocou o interfone do 701. A empregada atendeu:

- Ana, ói, é pra avisar aí a Dona Sandra que o “estrupador” tá subindo, viu?

- Quem tá subindo, Gidevaldo?! – perguntou Ana, apreensiva.

– O “estrupador” - e desligou o interfone.

Ana, empregada antiga da casa, crente, saiu correndo esbaforida pelos cômodos, gritando:

- Dona Sandra! Ô, Dona Sandra! Acode aqui, por Jesus... ligaram lá de baixo dizendo que o “estrupador” tá subindo.

- Quem tá subindo, Ana?! – perguntou Dona Sandra, assustada.

- O “estrupador” – respondeu Ana, as pernas tremendo e a voz falhando.

Dona Sandra correu para o interfone, o dedo, ávido, metralhava o 20, o número da portaria. Ocupado. Tentou de novo, ocupado.

- Ana, passa a tranca na porta, rápido! – gritou.

E continuou tentando. 20. 20. 20. Ocupado.

- Ana, corre pra porta da frente! Passa a tranca lá também.

Dona Sandra pensou em ligar para o marido. Chegou à conclusão de que não adiantaria: o estuprador já estava no prédio, já havia passado pela portaria. Àquela altura estava no elevador, talvez já desembarcando no 7º andar. O interfone sempre ocupado seria um sinal de que o malfeitor havia cortado a linha, imaginou ela. Ana entoava preces em voz baixa, trêmula, enquanto empunhava uma vassoura de madeira para se defender.

Tocou a campainha da porta de serviço. Dona Sandra e Ana gelaram, seus pelos se arrepiaram. O fim para elas parecia estar próximo. Por conta do desespero, as duas se abraçaram. Ana deixou cair a vassoura.

- Vá embora! Vou chamar a polícia! – gritou Dona Sandra.

A campainha tocou novamente. Dessa vez, um pouco mais demorada.

- Vá embora, maldito – murmurou Ana.

Após uma pequena e eterna pausa, o som seco de três batidas na porta de madeira provocou novo alvoroço e gritaria:

- Socorro! – Dona Sandra implorava por ajuda.

- Meu Jesus, me dê uma boa hora! – Ana suplicava por redenção.

Após insistentes batidas e pedidos de salvação, o suposto criminoso se manifestou:

- Dona Sandra, calma, Dona Sandra... só vim trazer a capa do sofá da senhora. Sou eu, Raimundo, o estofador.

domingo, abril 04, 2010

Fim de semana prolongado e ovos de chocolate à parte...

“Chegados que foram ao lugar chamado Calvário, ali o crucificaram, como também os ladrões, um à sua direita e outra à sua esquerda.

E Jesus dizia:

- Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem.

Eles dividiram as suas vestes e as sortearam. A multidão conservava-se lá e observava. Os príncipes dos sacerdotes escarneciam de Jesus, dizendo:

- Salvou a outros, que se salve a si próprio, se é o Cristo, o escolhido de Deus!

Do mesmo modo zombavam dele os soldados. Aproximavam-se dele, ofereciam-lhe vinagre e diziam:

- Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo.

Por cima de sua cabeça pendia esta inscrição: “Este é o rei dos judeus”. Um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele:

- Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!

Mas o outro o repreendeu:

- Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum. – e acrescentou – Jesus, lembra-te de mim quando tiveres entrado no teu Reino!

Jesus respondeu-lhe:

- Em verdade, te digo: hoje estarás comigo no paraíso.”

Lucas 23, 33-47.

Se nunca é tarde demais para se arrepender, buscar o perdão e ser perdoado, também não deve ser tarde demais para desejar uma feliz páscoa. Um forte abraço a todos.

quarta-feira, março 17, 2010

O Rei que, ao que tudo indica, queria roubar a coroa dos outros.


Há algum tempo atrás, um grande amigo me disse que estava tendo problemas com sua namorada. Sentamos pra conversar. Ele, aflito, disse que certo dia... aliás, pior, certa madrugada, o telefone de sua amada havia tocado enquanto os dois dormiam. Ela não acordou com o toque, mas ele acordou. Quando olhou no display do celular, meu amigo leu: Rei. Achou estranho, mas passava das 3 da matina e tudo o que ele não queria aquela hora era levantar da cama para discutir relação. Voltou a dormir.

No dia seguinte, nem o café da manhã fez descer a pergunta presa na garganta. Entre um gole de suco e outro, escapuliu:

- Quem é Rei?

- Rei?

- Sim, Rei. Ligou pra você essa madrugada. – Nestor perguntou enquanto cortava o pão.

- Ah, sim. É Rei, aquele músico do Chiclete com Banana. – respondeu a namorada calmamente.

- E o que ele queria com você às 3 da madrugada? – perguntou Nestor segurando a faca com um pouco mais de força.

- Nós somos amigos, conheço ele há uns dois anos. Gente boa. Mas, sinceramente, não sei o que ele queria comigo às 3 da manhã.

- É? Ah, é? Sabe o que eu vou fazer? – Nestor, com as mãos, transformou o pão em farelo.

Foi então que, apreensivo, eu interrompi a narração da sua história:

- Ai, ai, ai, o que você fez, Nestor?

Pedindo paciência com a palma da mão apontada pra mim, buscando as minúcias da história, Nestor continuou:

- Falei pra ela: me dá seu celular agora que vou ligar pra esse tal de Rei.

- Amor, que é isso? Você vai falar o quê? Olha a confusão...

- Me dá o celular!

Tomado pela raiva, insistindo em ligar, Nestor conseguiu o que tanto queria. Pegou o celular da namorada, chegou na letra “R” e procurou pelo monarca do axé music. Discou pro sujeito. Do outro lado, o suposto Don Juan atendeu com certa doçura:

- Oi Sabrina!

Com a voz talhada de quem está com o sangue ácido, Nestor respondeu:

- Sabrina uma @#$%&*!!!!! Quem tá falando aqui é o namorado dela, seu @#$%^&*!

Surpreso, o cara respondeu:

- Calma, amigo, calma...

- Calma uma @#$%^&*!!!! – urrou Nestor com os olhos revirando.

- Peraí, rapaz, sou eu... Rei... Rei do Chiclete.

Fiz nova interrupção na história:

- Ah, sim... porque ele é “Rei do Chiclete” pode ligar pra sua namorada de madrugada? Você disse o quê?!

Foi então que Nestor interpretou de maneira teatral uma resposta fantástica. Quase entrando em convulsão de raiva, ele disparou:

- Escute aqui... você pode ser Rei do Chiclete, pode ser príncipe da bala de goma, conde da pastilha Adams, duque da jujuba... não me interessa! Nunca mais ligue pra minha namorada, seu @#$%&*!!!

Depois de me embolar de rir com a espirituosidade irritada de meu amigo, perguntei a ele:

- E o cara voltou a ligar?

- Ele não é doido...

- Sinceramente, achei que você foi radical demais. Dava pra resolver na diplomacia... carnaval tá chegando, você podia negociar uns abadás... – não resisti.

Foi então que, em contrapartida, eu acabei sendo coroado com adjetivos e palavras doces reservados apenas à realeza.


PS: quero mandar um abraço aos leitores de Portugal que, de uns dias pra cá, aumentaram bastante sua participação nos números de acessos do blog. Obrigado aos amigos de Lisboa, Porto, Aveiro, Coimbra, São João da Madeira, Vila Nova de Gaia, Estoril, Evora e Viana do Castelo. São sempre bem-vindos.

sexta-feira, março 12, 2010

Meu irmão Dudu em três pequenas passagens.


Quebra-molas de madeira.

E eu já não aguentava mais rodar pelas estradas do CIA, cheias de longas retas, uma rótula atrás da outra, trechos desertos, verdadeiro paraíso da desova de carros e de gente. Tudo isso para chegar em Caboto, povoado de Candeias, interior da Bahia, encontrar meu irmão que encontrava-se ilhado.

Completamente perdido, passando por preocupantes sombras de sinal de celular, colecionando quilômetros, sem viva-alma para dar uma pista do caminho, eis que surge um tracinho no celular indicando que valia a pena tentar fazer uma ligação. Telefonei correndo para Dudu, que conhecia bem aquele caminho:

- Duda, vou desistir. Não aguento mais girar em rotatórias...

Com uma certa falta de paciência, ele me respondeu:

- Meu filho, você já passou pelo quebra-molas de madeira?

- Eu já perdi a conta de quantos quebra-molas passei, Dudu! Mas todos de asfalto.

- &$%#*@! Madeira é o nome do povoado!

Uns 2 quilômetros à frente, a confirmação: Posto de Saúde de Madeira. E as paredes do lugar, curiosamente, eram de tijolos.

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Um Táxi no carnaval e uma incrível coincidência.

As mágicas – para muitos - cortinas do carnaval estavam prestes a se fechar. A terça-feira, último dia da folia, despedia-se dando espaço ao misto de euforia que causam os últimos acordes e a melancolia da quarta de cinzas. Em cima do camarote, chegou um momento em que Dudu não mais se governava, era totalmente submisso a um sujeito de apenas 8 anos, um tal de Johnnie Walker. Eu, bom irmão que sou, em minhas plenas faculdades mentais, ia no bar e lhe trazia água. Porém, a cada gole d’água, seguiam-se quatro de whisky, o que não ajudava muito na sua recuperação.

Após ficar inofensivamente chato com uma porcaria de um martelinho inflável, destes de propaganda que jogam do trio-elétrico e que ele insistia em golpear os presentes, resolvemos esperar o Voa Voa passar para irmos embora.

Descemos todos: eu, Dudu, Nadja, minha cunhada, Bia, minha sobrinha e um casal amigo. Abrindo caminho entre cambaleantes pierrôs e colombinas de fim de festa, ia eu dando direção à turma, sempre tratando de olhar para trás para conferir se não tinha ficado ninguém perdido no meio da confusão. Num desses momentos, me surpreendi com uma cena inusitada: vinha Dudu andando, um sorriso de canto de boca, olhos semicerrados, as pernas cruzando ao caminhar, um verdadeiro top model na passarela.
Em momentos assim, onde misturam-se multidão e álcool, pequenos percursos viram verdadeiras procissões. Mesmo a gente explicando que já estávamos chegando ao ponto de táxi, Dudu insistia em entrar num banheiro químico pra fazer xixi. Se você tem alguma curiosidade para conhecer o inferno, sugiro que entre num cubículo destes de terça para quarta de cinzas. A gente pediu, argumentou, implorou, mas não teve jeito: ele abriu a porta e sumiu no escuro daquela podridão.

Após alguns minutos, ficamos preocupados dele ter ficado off-line justo dentro do banheiro químico e eu acabei indo lá conferir. Nunca na minha vida desejei tanto ter o poder de mover objetos para poder abrir aquela porta sem colocar a mão na maçaneta. Ao puxar a porta, Dudu de costas para mim e de frente para o vaso - ou seja lá como se chama aquilo -, paralisado. Imagino que aquele cheiro (do qual, inclusive, jamais vou esquecer) tenha o deixado em choque. Apenas me respondeu sussurando:

- Já vou...

Aguardamos mais uns dois minutos, tempo suficiente para nos escorarmos na balaustrada que separa a avenida da praia, e eis que sai Dudu, trançando pernas e um sorriso no rosto, nem parecia que tinha saído daquela tristeza de lugar. Ah, o fantástico lado bom da amnésia alcoólica.

Chegamos ao ponto e lá, apenas um táxi. Heber e Sílvia, nosso casal amigo, vendo o estado de Dudu, gentilmente nos cedeu o veículo. Mas, considerando aquela sua última corrida do carnaval, o taxista se achou no direito de optar por passageiros que não morassem nos arredores, procurando assim por uma corrida mais longa. Ok, justo. Eu, Heber e Nadja tentávamos convencê-lo de nos levar enquanto Dudu, ao nosso lado, estático, parecia ouvir a conversa:

- Amigo, faça essa corrida, a gente precisa chegar em casa... – dizia um de nós ao taxista.

- O horto não é tão perto assim – completava outro.

- Pra que lugar do horto vocês vão? – perguntou o taxista.

- Rua Waldemar Falcão.

Não muito satisfeito, o taxista concordou e entrou no carro. Nesse momento, Dudu resolveu se manifestar, colocou a cabeça dentro da janela do carro e perguntou para o motorista:

- Peraí amigo, você tá indo pra onde?

- Horto... – respondeu o taxista já sem paciência.

Com uma cara de surpresa, disse Dudu:

- Porra, que coincidência. A gente também. – e entrou no táxi com a empolgação de quem tinha encontrado uma grande oportunidade.

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El fabuloso creme de choclo.

Olha, foi simplesmente fantástico esquiar em família no meio do ano passado. Eu até escrevi um post sobre esta viagem há tempos atrás. É, e também fiquei de escrever a continuação da história, eu sei, desculpem. Mas é aquela coisa, a gente vai lembrando de outras histórias e acaba correndo para escrever e não esquecer. Um dia escrevo a sequência, prometo.

Bom, o fato é que, viajando pela América Latina, há sempre uma tentação em acharmos que falamos espanhol. Como dizia um sujeito num fantástico comercial de TV, “hablar ‘erpañol’ es ‘ácil’... ‘hasta’ hablar con la boca abierta, sin cerra-la un só ‘momiento’”. Esse artifício idiomático tem um efeito colateral: não demora e você logo começa a babar.

Eu sou cara de pau, assumo, me arrisco num portunhol cheio de propriedade. Acabo entendendo e sendo entendido. Mas, quando não faço ideia de como é a palavra que quero dizer em espanhol, a pronuncio em português mesmo. Assim, corro menos riscos.

Já Dudu, não. Dudu simplesmente formulava frases completas em espanhol. Em certos momentos, era tamanha a sua segurança que eu chegava a acreditar que ele sabia o que estava dizendo. 

No nosso último dia em Santiago, resolvemos nos despedir da cidade numa churrascaria bacana de lá. Depois de explorarmos o cardápio, acabamos pedindo sugestões de pratos de carne ao garçom que, gentilmente, foi explicando um a um. Após escolher seu prato, Dudu resolveu arriscar um acompanhamento que não estava no cardápio:

- Por favor, yo quiero como “acompanhamiento” un “creme de mijo”.

- Señor, creo que no puedo traer una crema de mijo para usted. – respondeu o garçom, constrangido.

- Pedro, diga a ele que eu quero um creme de milho... – disse Dudu, como se eu tivesse vocabulário em espanhol para resolver a situação.

Entendendo a solicitação, o garçom corrigiu:

- Crema de choclo!

- No, gracias, “sobremesa” ahora no... quiero creme de mijo!

Nesse momento, lembrei que, em um dos dias no café da manhã, tinha ouvido algum garçom se referir a milho como choclo. Foi então que, em meio a uma crise de riso, eu levantei o polegar para o garçom e disse:

- Crema de choclo!

Irritado, Dudu dizia:

- Ô animal, eu não quero doce agora! Peça o maldito creme de milho!

Eu não conseguia parar de rir, apenas olhava para o garçom e dizia:

- Sí, choclo!

Após servir o creme de choclo a Dudu, espirituoso, o garçom esperou que ele provasse o prato e em seguida disparou:

- Entonces, señor... mejor que una crema de mijo, no?

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Jardim dos Namorados.

Ah, bons tempos aqueles em que não existia a SET, Transalvador, ou seja lá como se chama esse suposto órgão que só serve para atrapalhar ainda mais o trânsito caótico da minha cidade. Além do tráfego fluir bem melhor, a inexistência desses acéfalos me permitiu uma grande regalia: dirigir a partir dos quinze anos.

Tá bom, tá bom, eu sei que não é politicamente correto, mas eu dirigia melhor do que a grande maioria dos baianos (o que não é lá muito difícil) e, se eu não pegasse no volante precocemente, não teria essa história para contar a vocês.

O ano era 1994 e eu iria completar 16 anos. No colégio, começou a circular uma história de que o Jardim dos Namorados, um espaço meio sem utilidade na orla de Salvador, com cara de estacionamento amplo em frente ao mar, abrigava durante a noite uma grande quantidade de casais em seus carros economizando no motel.

Sabem como é: adolescentes e idosos só sabem o que é sexo na teoria. Aliás, retiro o que disse. Hoje, graças à falta de pulso dos pais e de tantas facilidades, a pouca vergonha nunca começou tão cedo e, graças ao Viagra, nunca terminou tão tarde. Bom, o fato é que na minha época as coisas não eram tão fáceis assim. Portanto, saber que o povo testava os amortecedores dos carros no Jardim dos Namorados atiçava a curiosidade da gente.

Naqueles tempos, o carro lá de casa era um Ômega Suprema. Para quem não chegou a conhecer, o modelo mais parecia um carro funerário. Era grande, feio, comprido e tinha uma mala que cabia uns cinco caixões. Eu era coligado dos porteiros do meu prédio e, de vez em quando, esperava minha mãe dormir e “pegava o carro emprestado”.

E todo mundo sabe que dirigir é um poder incrível para um aspirante a homem. A gente se sente capaz de qualquer coisa. Eu mesmo achava mágico chegar no colégio aos sábados de manhã para fazer prova no Ômega Suprema. E olha que o carro era um Frankstein: horrível e instável. Tão instável que uma vez entrei mais rápido do que devia numa curva, perdi o controle da direção e quase caí com ele no Dique do Tororó. Pelo menos já estava dentro do carro funerário.

Enfim, estávamos na sala de aula, numa rodinha de meninos, comentando dessa tal história esquisita de motel sobre rodas. Eis que surgiu o plano:

- E se a gente fosse lá conferir esse negócio de perto? – sugeriu Firpo, um gordinho baixinho, sujeito gente boa, amigo nosso.

- Como, Firpo? A gente chega lá andando, um bando de homens, para na frente dos carros e fica assistindo? – manifestou-se Juninho.

- Claro que não. Pedro não vive pegando o carro? A gente vai nele... – Firpo tratou de colocar o Ômega Suprema no bolo.

- Ok, Firpo... eu não tenho mulher, você não tem mulher, Juninho não tem mulher, Pedro não tem mulher. Eu não vou virar seu par só para assistir o rala e rola dos outros no meio da rua. – impaciente, respondeu Cabrote.

Firpo, sem se dar por vencido, insistia:

- Calma. Ouvi dizer que muitos casais prendem um jornal na janela do carro para ter mais privacidade. Como se fossem cortinas, sabe? É só a gente chegar lá cheio de folhas de jornal que ninguém vai saber que só tem homem dentro do carro.

A turma, que antes não estava dando muita bola para o que parecia ser mera maluquice de adolescente tarado, começou a levar a ideia de Firpo a sério.

- Que dia você consegue pegar o carro? – Juninho me perguntou.

- É mais provável que eu consiga no sábado – respondi.

- Ótimo. É o dia do nosso jogo de futebol. De lá, seguimos para o Jardim dos Namorados. A propósito, não esqueça de levar a bola, Firpo – disse Cabrote.

- Deixa comigo. Vou levar também os jornais.

O som estridente da sirene do colégio anunciava que mais uma cansativa manhã de aulas no Anchieta havia terminado. Com pesadas mochilas mal acomodadas nas costas, o bando se dispersou.

Chegou o sábado. Diante da expectativa do grande acontecimento de logo mais à noite, o baba seguiu ainda mais displicente do que o usual. Após algumas caneladas e lances que superariam qualquer “Bola Murcha”, seguimos para o Jardim dos Namorados. No carro, apenas eu, Juninho, Cabrote, Firpo e folhas e mais folhas de jornais.

Ao nos aproximarmos do lugar, ficamos impressionados com a quantidade de carros apontados para a praia, como se um monte de gente estivesse ali apreciando o negrume do mar à noite, ou quem sabe até a lua debruçada no horizonte. Mas, muito menos romântico que isso, o espaço não passava de “transódromo municipal”. Os carros pareciam ter vida própria: cada um balançava num ritmo diferente do outro. Como o nosso não iria balançar, fiquei com medo de desconfiarem de nós. Pensamos até em ficar pulando no banco do carro para disfarçar.

- Vai, coloca logo os jornais nas janelas! – ordenou Juninho.

Firpo separava rapidamente as folhas e, afoito, as entregava para nós. Cada um tratou de baixar o vidro da sua janela para, logo em seguida, subi-lo prendendo o jornal.

Encontrar uma vaga foi tão fácil quanto estacionar no shopping em véspera de natal. Quase a ponto de desistir, conseguimos parar o carro entre uma caminhonete e um Fiat 147 - sim, um proprietário de um Fiat 147 tinha o mesmo direito de se divertir que um dono de um 4X4. O Jardim dos Namorados era, antes de qualquer coisa, democrático.

Depois da tensão inicial e com o carro totalmente vedado por páginas policiais, crônicas políticas, colunas sociais, classificados e até notas de falecimento, nos sentimos eufóricos ao vermos que a nossa ideia estava dando certo. Uma tentativa de comemoração mais exaltada foi rapidamente reprimida diante do medo de sermos descobertos. No mínimo, iam achar que se tratava de uma animada suruba homossexual – e dentro de um carro, para completar.

- E agora, como fazemos para ver o que está acontecendo lá fora? – perguntou Cabrote.

- É só fazer um furo bem pequeno no jornal de sua janela e olhar, animal. – prático e gentil, respondeu Juninho.

Rasgando poucos milímetros do papel com as pontas das unhas, inaugurei o meu observatório. Ao meu lado, no banco do carona, com extremo cuidado, Juninho fez o mesmo. Para mim, descortinou-se a cena de amor – se é que era esse o real sentimento – do casal da caminhonete. Para Juninho, ficou a empolgação que fazia o interior do Fiat 147 parecer ainda menor.

Para nós era simplesmente inacreditável que a suposta insanidade de Firpo estivesse dando certo. Estávamos ali, os quatro, testemunhando a cópula dos outros sem que eles nem desconfiassem. Eu só imaginava a resenha que faríamos depois no colégio - que acabou nos dando uma fama de mentirosos que durou até o vestibular.

Mas, o fato é que estava saindo tudo certo: cada um em uma janela, cada um com seu show particular. Foi então que, de repente, a mulher da caminhonete foi parando de se movimentar em cima do sujeito, ao tempo que olhava para o nosso carro com um semblante que combinava curiosidade e preocupação.

- Pessoal, acho que descobriram a gente... – murmurei apreensivo.

- Calma, não tem como, tá tudo vedado. – respondeu Juninho.

- Junior, você não está entendendo. A mulher parou de transar e está olhando pra cá. – respondi.

Eis que, diante da tensão e do início de agitação causados pela possibilidade de termos sido desmascarados, eu e Juninho olhamos para trás e, surpresa: Firpo havia feito em seu jornal dois grandes círculos para enxergar a cena. Ou seja, ao invés dos pequenos furos que nós fizemos, ele recortou duas bolas imensas no lugar dos olhos, como se fosse uma máscara de carnaval. Só faltou colocar também o nariz e a boca. Por milésimos de segundo, imaginei o corta-clima que foi para a mulher olhar para nosso carro e ver, através de dois buracos descomunais num jornal, um par de olhos esbugalhados fitando ela.

A mulher deu um pinote de cima do cara e, protegendo com uma das mãos suas vergonhas, com a outra, apontou aflita para a janela de Firpo. Seu companheiro, que parecia visitar uma outra dimensão, voltou a si abruptamente como um hipnotizado que recebe um estalo no ouvido para sair do transe. Com o semblante de relaxamento dando lugar a uma cara de poucos amigos, o sujeito achou os olhos de Firpo que, insistente, não os tirava de dentro dos buracos enormes da folha de jornal.

Foi então que o caos se instaurou dentro do ômega suprema.

- Vai, liga o carro! Liga o carro! – gritava Cabrote.

O parceiro da mulher, nervoso, ensaiava uma saída de dentro da caminhonete. Para nossa sorte, suas calças à meia perna não permitiam tamanho movimento. Àquela altura, Juninho unia-se a Cabrote nos tapas em minhas costas e nos sucessivos gritos de “vai!”. Apenas Firpo continuava imóvel, catatônico, com os olhos colados na janela.

Movido pelo desespero, consegui ligar a chave. O carro, engrenado, deu um pulo pra frente e morreu. “Vai! Vai!”. Consegui pisar o pé na embreagem e o motor ligou. Engatei a ré às pressas e acelerei sem me dar ao luxo de ver se vinha algum carro atrás. Por sorte, não vinha. Ao deixarmos a vaga, tenho quase certeza de que Firpo, através do seu jornal, ainda conseguiu ver o sujeito se embolando com sua própria calça ao sair da caminhonete.

Quando eu lembro desta verdadeira odisséia que tivemos que passar para ver uma, digamos assim, manifestação sexual leve, me convenço de que a minha geração adolescente foi a última felizarda a ter que usar a criatividade para ter acesso a este fantástico mundo proibido. E tiveram períodos ainda piores. Como diz Tio Fulano, “na minha época, a gente se excitava vendo tornozelos. O resto do enredo tínhamos que criar todo na cabeça”. Hoje, esses meninos amarelos de computador já não exercitam mais a imaginação – apertam um simples botão e... puf! Pornografia. Sinto muito por eles: jamais vão ter a oportunidade de testemunhar um Firpo em estado pré-autista pelo simples fato de conseguir ver, ainda que de longe, um peito pela primeira vez.