domingo, janeiro 25, 2009

Teco-teco. A forma mais eficiente de se chegar ao céu. (Parte II)

Pois bem. Logo, logo, percebi que não havia nenhuma linha de ônibus até Salvador e que, em algumas horas, enfrentaria todo o terror de novo. Boipeba é um lugar inóspito, uma pequena vila no meio de um paraíso difícil de descrever. Desses lugares cheios de pousadas de alemães, franceses, italianos e paulistas: pessoas que chegaram lá para visitar e resolveram deixar tudo para trás em troca de um pouco de paz e sossego.

Sair de dentro daquele forno que era o teco-teco e receber o carinho da brisa no rosto em meio ao coqueiral, era simplesmente uma bênção. Andamos todos, Adrian, piloto, equipe de filmagem e eu, e chegamos até um píer no rio onde uma pequena lancha nos aguardava. Embarcamos e fomos navegando em águas calmas, a inacreditável paisagem descortinando-se aos poucos diante de nossos olhos. Cheguei a me perguntar se o aviãozinho não havia caído: vendo o lugar à minha volta, parecia que eu tinha passado desta para uma melhor.

- Doutor Adrian, onde vamos? – perguntou o marinheiro da lancha.

- Vamos começar pela pousada de Giancarlo. – respondeu Adrian.

Era o início de uma agradável peregrinação entre pousadas e praias divididas entre rio e mar. O cinegrafista não desligava a câmera um só instante. Tamanha beleza, muitos eram os lugares para se apontar as lentes.

A última parada foi uma pousada que realmente me surpreendeu. Se eu não tiver grana para passar a lua-de-mel no Tahiti, tenham certeza: é na Alizées Moreré que vou encomendar meu herdeiro. O simpático dono do lugar nos convidou para almoçar e, como bom francês, foi pessoalmente até a cozinha preparar nossos pratos. À sombra da vegetação local, entre jaqueiras e mangabeiras, ao som ambiente de variados cantos de pássaros e espaçadas ondas do mar quebrando na areia, tomamos algumas cervejas e almoçamos.

O marinheiro da lancha, um jovem nativo de Boipeba, estava presente na mesa e eu notei que ele bebia com certa empolgação. Como ainda não existe blitz do bafômetro no mar, pra mim estava tudo certo, não dei muita atenção.

- Pierre, nos acompanha na lancha até o criatório de ostras? –Adrian fez o convite ao nosso anfitrião.

Imagine que no meio do rio existe esse criatório de ostras. Ao chegar lá, um sujeito mergulha e traz a iguaria pra você, fresquinha. Vida chata, não? Infelizmente, não foi possível conhecer o lugar: quando imaginei que o teco-teco era a maior ameaça às nossas vidas, chegou a vez do mar e do nativo fazerem a sua parte.

Ao entrarmos de novo na lancha, lembro do cinegrafista perguntando:

- Vai molhar? Essa câmera não pode receber respingos...

- Não, daqui até lá teremos poucas ondas. – respondeu o jovem marinheiro.

Então, o cinegrafista ligou de novo a câmera e passou a registrar o cenário – insisto no adjetivo – indescritível. Para ter uma visão privilegiada, fui até a frente do barco e fiquei de pé, pensamento perdido em algum canto, apenas observando centenas de cartões postais fora do papel. O resto do pessoal viajava sentado no banco em formato de meia-lua que havia no fundo da lancha.

Eufórico, o marinheiro falava sem parar e ia conduzindo o barco olhando para trás enquanto conversava com os outros passageiros. Quando chegamos próximos à entrada da barra que liga o mar ao rio, as águas começaram a ficar levemente convulsas. Logo mais à frente, água doce e água salgada pareciam não entrarem em acordo: juntas, formavam nervosas e perigosas ondas. Não me preocupei, afinal, estávamos sendo conduzidos por um nativo, alguém que supostamente conhecia com exatidão as armadilhas do lugar.

Com considerável velocidade, nos aproximamos das vagas em fúria. Imaginei que logo o marinheiro reduziria o ritmo para vencermos as ondas com tranqüilidade e segurança. Ledo engano. Só houve tempo para um breve e inútil grito meu:

- Olha a onda!

Do jeito que viemos, saltamos uma verdadeira rampa d´água. Casco e motor ficaram completamente fora do mar. Em milésimos de segundos, ainda com a lancha em pleno vôo, percebi o movimento da proa inclinando para frente. Era um sinal claro de que a lancha iria embicar e o impacto seria exatamente onde eu estava. Tentei correr para a popa, mas só deu tempo de me virar. Quando o bico do barco afundou na água, um verdadeiro turbilhão atingiu minhas costas me lançando com força para o banco do fundo, bem em cima do francês. E o cara nem fazia o meu tipo.

O estrago foi grande. A lancha estava inteiramente inundada. Para quem estava sentado, a água ficou na altura do peito. Tirando o meu celular que estava dentro de uma mochila, àquela altura boiando, todos os outros celulares foram definitivamente inutilizados. Meu joelho doía muito por conta de um impacto em algum lugar, provavelmente no próprio Pierre.

Após nos certificarmos de que todo mundo estava bem, presenciamos uma cena que emudeceu a tripulação por uns 5 minutos: o cinegrafista, desolado, elevando lentamente a câmera que estava totalmente submersa na água salgada. Uma câmera de 25 mil reais, provavelmente mais cara que a embarcação quase naufragada. Se tivesse morrido alguém ali, o diretor de filmagem não teria feito uma cara tão feia quanto fez ao ver a água jorrando de dentro do seu equipamento como se ele fosse um regador.

A lanchinha iniciava um processo irreversível de naufrágio enquanto o marinheiro, agora desesperado, acelerava ao máximo o motor. Mesmo assim, o barco deslocava-se lentamente, arrastando-se por conta do peso da água. E cada vez mais o casco ia sumindo. Eu já estava preparado para nadar, a mochila estrategicamente colocada na cabeça.

Quando tudo parecia perdido, conseguimos chegar à praia. O barulho do fundo do barco encalhando na areia era música para nossos ouvidos. Saltamos todos. Numa tentativa desesperada de salvar a câmera, a equipe de produção saiu correndo alucinada em busca de um pedaço de pano seco. Em meio a palavras duras, Adrian não perdoava o marinheiro que mal conseguia responder, escabriado pela própria irresponsabilidade e desolado pelo prejuízo que sofrera.

O francês despediu-se de nós, arrumou uma outra lancha e voltou para sua pousada – o coitado só pegou uma carona pra perder o celular. Nós também arrumamos uma outra lancha e voltamos para o aeródromo. O clima na equipe de filmagem não era dos melhores, o silêncio era incomodativo. Talvez isso tenha tirado um pouco o foco do desespero que precederia meu embarque.

Assim como na ida, adivinha quem foi no comando? Ele mesmo, Adrian, o aspirante a piloto, alguém com, no máximo, uma dezena de horas de vôo. A pista era uma atração à parte: após sua cabeceira, havia um curto coqueiral e logo mais vinha o mar e seu azul sem fim.

Todos de volta ao forno voador, taxiando mais uma vez para iniciar o processo de decolagem. Com certa dificuldade, Adrian alinhou o aviãozinho na pista e, segundos depois, acelerou forte o motor. O bicho foi ganhando velocidade e então saiu do chão cerca de 1 ou 2 metros apenas. Manteve essa ridícula altitude por um bom tempo e eu comecei a ver a pista ficando curta. Pensei que o teco-teco apresentava algum problema e não estava conseguindo ganhar altura.

- Adrian... – sussurrei.

Através do pára-brisa do piloto eu via a copa dos coqueiros se aproximando rapidamente. E mais perto. E mais perto.

- Adrian... – sussurrei um pouco mais alto.

Chegou um momento em que quase dava pra ver uma formiga andando em cima do coco. Aí não consegui mais segurar:

- ADRIAN! VAI BATER! #@$%*&! – utilizei cerca de 2/3 de todo o meu vocabulário de xingamentos.

Ao praticamente beliscar as palhas do coqueiro, Adrian puxou o manche todo e, ao som de uma gargalhada alucinante do desajustado empresário, o avião bruscamente iniciou uma subida a 90 graus do chão. Tratava-se de uma “brincadeira” de nosso “amigo”. Durante esta manobra, percebi que havia deixado meu estômago na pista. Mas meu pulmão decolou comigo - e ele gritava alto. Um misto de barulho infernal de motor de teco-teco, gargalhadas de Adrian e um ininterrupto brado meu. Foi assim o início da viagem.

Mesmo com o calor que fazia dentro do teco-teco, eu suava frio. Pense bem: se essas mini-aeronaves costumam cair por qualquer coisa, imagine quando alguém que está aprendendo a pilotar resolve fazer acrobacias. Meu cliente, experiente como ele só, caiu na besteira de acreditar que era piloto da Esquadrilha da Fumaça. O avião ainda subia verticalmente em alta velocidade quando eu tentei descolar minhas costas do assento e, segurando com dificuldade na cadeira da frente, me aproximei de Adrian.

- Adrian, ainda vamos continuar subindo assim por muito tempo? – disse eu, polidamente, tentando evitar que entrássemos em órbita.

- Pedrinho, meu querido, volte para o seu lugar. Assim você me desconcentra. – respondeu o inglês.

Obedeci. Não me restava fazer muita coisa a não ser rezar, pedir perdão pelos meus poucos pecados e assistir ao clássico filminho da vida que costuma passar diante dos olhos de quem vive seus últimos instantes.

De repente, o teco-teco endireitou-se e voltou a voar na horizontal. Sorte que, justamente pensando na volta, eu não abusei do delicioso almoço. Sorte! À esta altura, estaria escrevendo “A fantástica história da mala de cocô II”.

Quando nos aproximamos da pista de pouso do aeroporto de Salvador, iniciou-se mais uma surreal discussão:

- Doutor Adrian, por favor, me passe o manche para eu pousar. – disse o piloto.

- Não, eu vou pousar. – respondeu Adrian, taxativo.

- Mas doutor Adrian, o senhor ainda não sabe pousar. – o piloto tentou dissuadi-lo da catastrófica idéia. Literalmente catastrófica.

- Eu vou pousar, já disse. Vá me dizendo o que fazer. – Adrian encerrou a discussão.

Pelo menos o avião vai cair em Salvador. – pensei. Eu já não tinha sequer mais forças para entrar em qualquer discussão com Adrian. Tentei minha última cartada. Cutuquei o diretor de filmagem que estava ao meu lado e falei:

- Ó, ele está querendo pousar o avião...

Foi uma tentativa de fazer com que o cara reagisse. Uma forma de dizer: é melhor você fazer alguma coisa, amigo... vamos morrer. Só que o sujeito ainda estava entorpecido pela perda de sua câmera. Acho que ele nem se importaria se o teco-teco se espatifasse no chão: já tinha perdido a câmera dele mesmo, o que seriam mais 6 vidas?

Diante do silêncio do rapaz, só me restou acompanhar o avião fazendo zigue-zague enquanto buscava alinhar-se com a pista. O piloto ia ajudando:

- Vira para a esquerda, vira para a esquerda... não, não, passou do ponto... vira para a direita, vira para a direita. Pra direita, doutor Adrian!

Torre de controle, estacionamento, hangares de carga, aviões estacionados. Adrian apontava a frente do avião para todos os lugares, menos para a pista.

- Está muito rápido, doutor Adrian. Reduz a velocidade! Não, doutor Adrian, reduziu demais, acelera, acelera.

Engrenei um Pai Nosso seguido de uma Ave Maria. Metade da pista já havia passado embaixo de nós e Adrian não conseguia fazer o avião descer. De repente, pelo som do motor em baixa rotação, percebi que meu cliente havia desacelerado bruscamente o teco-teco numa tentativa desesperada de fazê-lo pousar. Foi então que, há uns 10 metros do chão, o aviãozinho desceu que nem uma pedra. Quando as rodinhas bateram na pista o impacto foi tão grande que achei que nossa latinha voadora iria se desmantelar. Assim como a minha coluna: deu pra ouvir umas 2 vértebras estalando.

Estranhamente, o avião subiu de novo. Ficou mais uns 3 segundos no ar e voltou a descer com tudo novamente. Mais um impacto e mais um desvio em minha escoliose. Mais uma meia-dúzia de vezes subimos e descemos como uma bola quicando até os dois conseguirem fazer o maldito teco-teco parar.

- Doutor Adrian, com todo o respeito: a torre deve estar pensando que eu estou bêbado. – deixou escapar o piloto.

O documentário jamais foi editado: as fitas ficaram inutilizadas pela água do mar no naufrágio da câmera. A produtora perdeu seu equipamento mais valioso. Eu não saí no Jornal Nacional. Aí você me pergunta: então todo esse terror serviu pra quê? Serviu para eu descobrir que, ao contrário do que nos ensinaram, o paraíso é na terra e o inferno certamente é no céu.

terça-feira, janeiro 20, 2009

Teco-teco. A forma mais eficiente de se chegar ao céu.


Há tempos atrás, escrevi “A fantástica história da mala de cocô” e publiquei aqui no blog. Comecei falando da beleza que era Boipeba, indiquei como um destino especial para uma viagem a dois e contei a saga que nosso piloto certa vez enfrentou por conta de uma dor de barriga em pleno vôo. Mas, eu não havia contado os detalhes desta viagem, o desafio que foi até chegar àquele paraíso, o fatídico retorno a Salvador, a sensação de morte iminente e a minha certeza absoluta e incontestável de jamais voltar a embarcar em um teco-teco enquanto for vivente.

Vamos lá. Um cliente meu, dono de um táxi aéreo, solicitou à nossa agência a criação e acompanhamento de produção para um documentário sobre Boipeba. O material seria distribuído em agências de viagem que venderiam pacotes turísticos do destino e, com isso, esperávamos aumentar o número de vôos da empresa para o lugar. Até aí, tudo bem. Mas Adrian, meu cliente, me veio com uma exigência inegociável:

- Além da criação do roteiro, quero que você acompanhe pessoalmente a produção do VT. Decolamos na próxima quinta às 7 da manhã.

Eu nunca quis voar em avião pequeno. Quantas vezes já ouvimos William Bonner e sua esposa noticiando no Jornal Nacional: “monomotor cai na região tal e mata o piloto e dois passageiros”? Só dá isso na televisão: dólar subindo e aviãozinho caindo. Cada vez que a bolsa cai, mais uns dois desses acompanham. De estalo, lembrei que minha jornada na Terra tinha apenas começado, que eu ainda tinha muito o que viver:

- Adrian, sinto muito, de monomotor eu não vou.

Adrian, um inglês irrequieto, empresário de muitos negócios, me respondeu com seu jeito ansioso e usual tom de voz alto:

- Pedrinho, meu querido, a gente vai de bi-motor. Não tem com o que se preocupar.

Fiquei um pouco mais tranqüilo. Sempre ouvi dizer que quando um dos motores de um bi-motor pára, o outro segura o avião no ar. Procurei puxar da memória o histórico de tragédias com pequenas aeronaves e lembrei que pouco ouvi falar sobre quedas de bi-motores. É, o problema era realmente com os monomotores.

O dia da filmagem chegou. Acordei bem cedo, levantei da cama, olhei a imagem de Santo Antônio na estante, pedi a ele que mantivesse voando qualquer pedaço de aço que cruzasse o firmamento aquele dia, fiz o sinal da cruz e me mandei para o aeroporto. Chegando lá, encontrei o cinegrafista, o diretor de cena e uma produtora. Após uma pequena espera, chegou Adrian, o mentor da empreitada.

- Pessoal, desculpem o atraso, vamos embarcar. – disse meu cliente com a objetividade de sempre.

Os rápidos passos de Adrian pelo hangar foram seguidos por mim e pelo pessoal da produção. No caminho, mirei um avião robusto, parecia um jatinho. Pensei: tranqüilo, dá pra encarar numa boa. Mas, meu cliente passou por ele e continuou caminhando em ritmo acelerado. Após este, tinha um menor, suas rodinhas eram pequenas, mas ainda assim contei cerca de 4 janelas, o que indicaria uma capacidade mínima de 8 passageiros. Pra mim ainda estava bom. Mas Adrian mais uma vez passou batido pela aeronave.

A próxima (e única) aeronave na nossa direção era um aviãozinho bem pequeno. Sem exagero: vendo de longe, achei que se tratava de um aeromodelo, um avião de controle remoto. A impressão que se tinha é que se eu abrisse os dois braços, alcançava a mesma envergadura de suas asas. Os passos de Adrian apontavam na direção daquilo que parecia ser um Fusca alado. Não era possível, ele disse que a gente ia de bi-motor e não de caixa de fósforo. Mais alguns passos e meu cliente, como quem sobe num degrau baixo, pisou na asa e abriu a pequena porta lateral do avião. Nunca tinha visto aquilo! Pra subir no avião tinha que pisar na asa.

- Adrian, esse é um monomotor... – disse eu, parando de andar, quase dando passos pra trás.

- O bi-motor teve que fazer uma viagem, vamos nesse mesmo. – disse Adrian, naturalmente, de cima da asa e com a mão na porta aberta.

Antes que eu pudesse dizer algo, a equipe de filmagem, acostumada a voar em qualquer coisa, entrou no aviãozinho. Só sobrou eu do lado de fora e Adrian segurando a porta.

- Vamos, pise aqui e suba! – disse o intrépido empresário.

Estranhamente, a vergonha de correr foi maior que o medo de morrer. Mesmo achando que ali dentro não cabia mais ninguém, entrei no avião.

Dentro, dois assentos virados para dois outros assentos. Na frente, o piloto e Adrian. Parecia um carro realmente, um carro bem pequeno. Não havia qualquer separação entre passageiros e tripulação: esticando a mão dava para tocar a cabeça do comandante. Além do medo daquilo cair, eu ainda tive que enfrentar minha claustrofobia. E, tudo isso, sem poder demonstrar pânico.

Foi então que Adrian resolveu piorar consideravelmente a situação:

- Eu vou comandando. – disse ele, taxativo.

- Não, doutor Adrian. O senhor ainda está aprendendo a pilotar, deixe que eu comando. – respondeu, cauteloso, o piloto.

- Eu comando e pronto. – disse o dono do avião. Com propriedade.

Pensei em fugir. Era o desespero vencendo a vergonha. Mirei a porta, mas, nem como abrir aquilo eu sabia. Antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, Adrian ligou o avião e, ao som de um motor super acelerado, a aeronave arrancou em alta velocidade pra frente. Um funcionário do hangar que estava manobrando o avião aos empurrões, dobrou a coluna toda pra trás e a asa passou por cima dele num movimento que me fez lembrar a antiga dança da cordinha do Gera Samba.

- Adrian, deixe o cara pilotar... – balbuciei.

Não houve resposta.

- Você devia ter me avisado que o avião estava acelerado. – disse meu cliente fitando o piloto com olhos de reprovação.

- Doutor Adrian, deixe eu...

Adrian interrompeu o piloto:

- Peça permissão à torre para decolarmos.

O avião foi taxiando lentamente. Lembro de como ele já balançava, ainda em solo, por conta do vento suave que passeava pela pista. Daqui a alguns segundos, se sairmos do chão, vou me sentir dentro de uma batedeira. – pensei.

- PT-JKA: decolagem autorizada. Boa viagem. – respondeu a torre através do rádio.

Deu vontade de pedir para o maldito controlador de vôo definir o que era uma boa viagem.

O avião enfim ficou de frente para a pista. O motor voltou a acelerar, dessa vez, de maneira proposital. À medida em que íamos ganhando velocidade, a fuselagem tremia mais e mais, metais estalavam.

- Puxa o manche! Puxa o manche! – ordenou o piloto ao aprendiz de piloto.

Através da visão que me permitia a minúscula janela e do frio que percorria minha espinha, dei-me conta de que o teco-teco estava ganhando altura. Já não havia mais o que fazer. Apenas tentar manter a calma e torcer para chegarmos logo ao destino. Ou, simplesmente, chegarmos.

- Vamos fazer em 40 minutos... – avisou Adrian, curvando a cabeça sobre o assento do piloto.

Pois acredite: dentro de um monomotor não existe ar condicionado. Pelo menos, neste não existia. O sol de Salvador, para variar um pouco, estava de fazer derreter. E, querendo ou não, voando, estávamos ainda mais perto do astro-rei. O barulho do motor era insuportável, não dava para conversarmos absolutamente nada.

Logo, já não sobrevoávamos mais Salvador: abaixo de nós, apenas a magnífica visão das águas da Baía de Todos os Santos, suas ilhas e vastos coqueirais. Confesso que, diante desta cena única, esqueci por alguns instantes que eu estava dentro de um monomotor pilotado por alguém que supostamente não sabia pilotar. Porém, os vácuos que em aviões maiores são motivos de discretas turbulências, no nosso teco-teco causavam sensação de queda livre e faziam-me voltar à dura realidade.

Começamos a sobrevoar Morro de São Paulo. Ao passarmos próximos ao farol, um dos pontos turísticos do lugar, Adrian virou a aeronave toda de lado e começou a circular a enorme torre sem parar.

- Filma o farol, olha que bonito. – disse Adrian à equipe.

Parecia que, a cada volta, o avião passava mais perto daquela enorme estrutura. Uma asa do avião mirava o chão, a outra, o céu. Segurei-me na parede para não cair para o lado. Diante da proximidade e do risco real que estávamos passando, não agüentei:

- Adrian, o pessoal já filmou. O pessoal já filmou!

O teco-teco foi endireitado e novamente voltou a voar em linha reta. Um pouco mais à frente, estava Boipeba. De cima, o lugar era realmente fantástico.

- Xi, a pista está cheia de bois. – constatou Adrian.

Parecia mentira, mas era verdade. Colocaram um rebanho inteiro para pastar em cima da pista de pouso. Não havia ninguém por perto, nem um vaqueiro sequer que pudesse tanger os bichos para fora dali. O piloto se manifestou:

- Doutor Adrian, só há um jeito: vou dar um rasante na pista para espantar os animais. Por favor, me passe o manche.

Nada mais nesse vôo me surpreendia. A sorte foi que o dono do avião desta vez obedeceu. Com o trem de pouso quase batendo nos chifres dos animais, o piloto conseguiu afugentar a boiada que corria desesperada. Eram os bois e eu, todos morrendo de medo. Com a pista livre, fizemos meia-volta e pousamos. Demorou para eu acreditar que estávamos em terra firme. Ao descer do avião, só conseguia imaginar que horas partiria o próximo ônibus Boipeba-Salvador.

O negócio é o seguinte: agora, terminando de contar apenas a ida, me dei conta de que o texto ficou denso. Não tenho culpa. Se fosse um momento de paixão, casos de rodinhas de amigos, um dia na praia, teria passado rapidinho. Mas, pra quem está no terror, o relógio é cruel, os ponteiros andam com o freio de mão puxado. Sendo assim, vou guardar a volta para o próximo post. Nele teremos a câmera de 25 mil reais sendo naufragada, o aviãozinho versus o coqueiral seguido de um quase-looping, o momento em que eu perdi a compostura e quase perco o cliente e o pouso estilo bola perereca. Aguardem.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

O reveillon mais curto da história da humanidade.

Pense num cara que sabe conservar seus bens. Esse sujeito é Milton Filho, meu primo. Se um dia você quiser comprar um carro usado, procure saber se Milton Filho não quer vender o dele: é o melhor negócio do mundo. Todo dia ele lava o carro, passa produtos especiais nas portas e partes móveis, alinha e calibra pneus quase semanalmente e só abastece com gasolina aditivada premium. Sempre que entro na super máquina de Milton Filho tenho a impressão de que ela acabou de sair da concessionária.

Dia desses, meu querido primo entrou no meu carro para irmos a algum lugar. Girei a chave na ignição, liguei o motor, pisei na embreagem e engatei a ré (sem duplo sentido, por favor). Milton Filho deu um grito apavorado:

- Você é louco?!

Pisei assustado no freio. O pneu cantou.

- O que foi, rapaz?! – respondi com outra pergunta não menos exclamativa.

- Como é que você liga o carro e sai assim, imediatamente? Tem que esperar a gasolina circular por todo o motor... – Milton Filho apoderou-se da marcha do carro e a colocou em ponto-morto.

Eu achei que a injeção eletrônica ocupava-se disso. Mas, se o expert Milton Filho falou, tá falado.

Outra grande paixão do rapaz é uma lancha que herdou de meu tio. O barco é uma clássica Carbras-Mar de 32 pés da década de 70. Mas, assim como seus carros, esta embarcação anciã também nos traz a impressão de que acabou de sair do estaleiro. Trata-se de uma verdadeira relíquia, uma jóia flutuante, alvo constante de propostas de compra.

Quem já teve a oportunidade de navegar na Cavimar sabe o que eu estou dizendo. Nela, meu primo torna-se um chato, um sujeito insuportável. Não pise aí! Não suba ali! Cuidado com o verniz do corrimão! E é assim, sob a mão de ferro de Milton Filho que a sua lancha é uma das embarcações mais bem conservadas da Baía de Todos os Santos.

Bom, aproximava-se o final do ano de 2007 e eu, Letícia (minha namorada na época), Milton Filho e Beta (sua namorada), não fazíamos a menor idéia de onde iríamos passar o reveillon. Primeiro, pensamos em ir para Maceió, mas logo furou: só havia sobrado os piores hotéis a preços proibitivos. Depois, tentamos ver algumas praias no litoral da Bahia. Sem chance, era o mundo inteiro disputando com nós, baianos, o nosso próprio paraíso. Uma petulância.

Eis que tive uma idéia que tinha tudo para ser brilhante:

- Milton, por que não juntamos alguns amigos e passamos o reveillon na Cavimar vendo os fogos de artifício na praia da Barra?

Esperei serenamente uma negativa por parte de meu primo. Claro. Provavelmente, a Cavimar jamais tenha navegado à noite. Muito menos numa noite tão movimentada por embarcações indo de um lado a outro da baía. Apesar dos donos de lanchas tirarem uma boa grana alugando seus barcos para o reveillon e a procissão do Bom Jesus dos Navegantes no dia 1o do ano, Milton Filho jamais alugou, emprestou ou sequer usufruiu do seu precioso bem nesta época.

Ele refletiu. A ausência de um imediato “não” alimentou fortemente minhas esperanças. Aproveitei o silêncio e ratifiquei:

- Encomendamos salgados, doces, talvez um prato quente principal, compramos bebidas, rachamos o combustível e a hora-extra do marinheiro. Vai ser uma virada de ano diferente, moreno. E vamos estar cercados apenas de nossos amigos. O que acha?

Movido pela possibilidade iminente de passar o ano novo diante da TV na agradabilíssima companhia de Faustão e seu Show da Virada, Milton Filho considerou:

- É uma opção...

Levamos a idéia para as meninas que aceitaram no ato. Então, foi só convidar mais alguns casais que também não tinham destino certo e organizar as compras.

- Somos 4. Vamos chamar mais 3 casais e fechamos 10 pessoas. – disse Milton Filho.

- Ué, a capacidade da Cavimar não é 12 passageiros fora o marinheiro? – perguntei baseado na premissa de que quanto mais gente, mais animação.

- Sim, a capacidade é 12, mas não gosto de encher a lancha.

Estava demorando. Mas, enfim. Ele ter concordado com o reveillon na Cavimar era o último milagre de 2007.

Além de nós 4, convidamos Danilo e Andréa, Mirela e Limão e um casal de amigos de meu primo. Fizemos uma pequena reunião para definirmos as compras. Tudo decidido, partimos para as encomendas. Se o ano que estava por vir tivesse metade da abundância da nossa virada, 2008 tinha tudo pra ser um grande sucesso. O nosso petit comittè prometia.

Chegou o 31 de dezembro. Fomos até a Bahia Marina e embarcamos todos na lancha. O clima era de intimidade, alegria e descontração. Acomodamos as bebidas e comidas com certa dificuldade: eram tantas garrafas de champagne, vinho, cerveja e ice que a geladeira do barco não cabia. Dois isopores grandes com gelo foram utilizados como apoio.

- Ei, cuidado para o isopor não estragar o piso... – disse Milton Filho sem tirar os olhos da nossa manobra, minha e de Limão, para acomodar a geladeira improvisada.

Antônio, homem experiente do mar da Bahia, marinheiro da família há umas duas décadas, guardião tão ferrenho quanto Milton da embarcação, conduziu lentamente a Cavimar até o Porto da Barra, local onde a grande queima de fogos iria acontecer. Lá, muitos outros barcos, de todos os tipos, tamanhos e qualidades, também aguardavam o grande momento.

Iemanjá e São Pedro haviam entrado em acordo: o mar, manso e sereno, adormeceu ainda cedo suas ondas. O conhecido vento nordeste que costuma conduzir os velhos saveiros para dentro da baía tinha se transformado numa suave brisa, alento para uma típica noite quente de Salvador. Tudo corria bem.

10, 9, 8... garrafas de champagne em punho. Por favor, apontem para fora do barco! – advertiu Milton Filho. 7, 6, 5... pow! A bebida de Danilo precocemente estourou fazendo a rolha voar longe. Sinal de mau presságio. 4, 3, 2, 1. Pow, pow, pow, pow. Abraços trocados, beijos apaixonados, votos de feliz ano novo sob um céu iluminado por indescritível chuva de cores. As embarcações saudavam umas às outras através de sonoras buzinas.

Foi então que, cerca de 20, 25 minutos após o início do ano, o inesperado aconteceu na nossa festa exclusiva. No meio de um brinde na proa da Cavimar entre eu, Letícia, Limão e Mirela, ouvimos um grito desesperado de mulher. Era Beta de cima do flying bridge (guarde esse nome bonito que quer dizer o andar de cima da lancha):

- Vai bateeeeeeeeer!

Ao olhar pra trás, só deu tempo de ver um casco colossal de escuna vindo em nossa direção. Era tão grande, estava tão próxima e rápida que pensei que ela iria passar por cima de nós, pondo a pique a Cavimar. Parecia o prenúncio de uma nova edição do Bateau Mouche. Aliás, o barco de Milton Filho merece uma analogia mais pomposa: chegaria ao fim como um verdadeiro Titanic baiano.

Sorte que todos estávamos na frente da lancha quando o bico da Oreoca, a escuna desgovernada, rompeu toda a capota da Cavimar e ainda detonou o flying bridge. Quase, quase, Beta era atingida. O barco sacudiu por inteiro ao som de um desesperador barulho de prejuízo. Por alguns instantes, chegou a ressoar em minha cabeça aquela música insuportável de Celine Dion.

Passado o susto, olhei curioso para Milton Filho. Qual seria sua reação?

- SEU FILHO DA P***!!! – gritou meu primo para o marinheiro da escuna, misto de indignação e lamento, seu corpo tremia.

Num rompante de desespero, ameaçou se jogar no mar em direção à outra embarcação. Seguramos Milton, buscando acalmá-lo. Ele ainda bradava, quase sem voz, praguejando contra as próximas 30 gerações do marinheiro responsável pelo estrago.

Tanto o marinheiro quanto os passageiros da escuna, apreensivos, pediam sucessivas desculpas a todos e procuravam saber se havia alguém ferido.

- SEUS FILHOS DA P***!!! – plural neles.

Nos afastamos da Oreoca e chamamos pelo rádio a Capitania dos Portos – o Detran do mar. A mão trêmula de meu primo apertou o botão do microfone e então iniciou-se um diálogo com surpreendente lingüagem técnica:

- Atenção Capitania dos Portos: lancha Cavimar chamando... atenção Capitania dos Portos: lancha Cavimar chamando. Câmbio.

- Lancha Cavimar: Capitania dos Portos na escuta. Câmbio. – respondeu uma voz séria e pausada do outro lado.

- Houve um sinistro e nossa embarcação está avariada. Uma outra embarcação do tipo escuna colidiu conosco. Há fortes sinais de embriaguez por parte do marinheiro. Câmbio. – disse Milton Filho, falando bonito.

- Por favor, reporte o nome da embarcação que o albarroou. Câmbio.

Albarroou! Essa o cara foi buscar nas entranhas do dicionário. Milton Filho mandou bem no “colidiu” e vem o cara e lança “albarroou”. Virei fã do sujeito.

- A embarcação que nos albarroou possui o nome de Oreoca. Oscar, Romeu, Eco, Oscar, Charlie, Alfa. O-R-E-O-C-A. Câmbio. – respondeu Milton Filho, gastando o alfabeto radiofônico.

- Lancha Cavimar: favor reportar avarias. Câmbio.

[pequena pausa para pensar como fazer isso de forma erudita. A raiva impediu]

- A lona de popa foi arrancada, os frisos laterais foram parar no fundo do mar e o flying bridge está destruído. – respondeu Milton filho com leve ranger de dentes. E completou – Câmbio.

- Lancha Cavimar: favor soletrar flying bridge. – disse o sujeito, do qual, diante desta solicitação, eu já não era tão fã assim.

Milton Filho soltou por instantes o dedo que aciona o microfone e desabafou para nós, indignado:

- P*** que pariu... o cara é da Capitania dos Portos e não sabe como se escreve flying bridge.

Meu primo inspirou fundo como quem busca paciência, largou de mão o alfabeto radiofônico e soletrou pausadamente através do rádio:

- F... L... Y... B... R.... I... T. Câmbio. – e fez cara de indignação.

Nesse momento, segurei a gargalhada através de um esforço hercúleo, abafei uma explosão de risadas de maneira sobre-humana. As duas figuras, Milton Filho e o carinha da Capitania estavam indo tão bem, tão cheios de expressões e vocabulários difíceis e, do nada, os dois tropeçam no flying bridge. Se eu risse diante daquele pesadelo que meu primo estava passando, certamente hoje ele não falaria mais comigo.

De novo, a Capitania nos surpreendeu:

- Houve vítimas no albarroamento? Câmbio.

- Não. Mas a embarcação está avariada e o marinheiro da escuna apresenta embriaguez. Câmbio. – respondeu Milton Filho.

- Cavimar: como não há vítimas, não há como fazer ocorrência. Favor conduzir a embarcação de volta para a Bahia Marina e amanhã pela manhã entre de novo em contato. Câmbio final.

Era óbvio que o sujeito queria era que a gente parasse de encher o saco pra ele poder voltar à sua cachaça de reveillon. Como ele havia sido irredutível, obedecemos sua ordem e, por volta de meia-noite e quarenta minutos, pusemos fim à nossa festa de fim de ano. Voltamos desolados para casa. Milton Filho, deprimido.

Quando lembro dessa história, sempre acabo fantasiando uma situação. O erudito da Capitania dos Portos em um contato com outra embarcação sinistrada qualquer e, orgulhoso, perguntando:

- Houve avarias no flying bridge? F... L... Y... B... R... I... T. Flying bridge.

Câmbio final, amigos.

Desejo a todos um 2009 muito, mas muito melhor mesmo do que esse meu reveillon de 2007/2008.