domingo, janeiro 25, 2009

Teco-teco. A forma mais eficiente de se chegar ao céu. (Parte II)

Pois bem. Logo, logo, percebi que não havia nenhuma linha de ônibus até Salvador e que, em algumas horas, enfrentaria todo o terror de novo. Boipeba é um lugar inóspito, uma pequena vila no meio de um paraíso difícil de descrever. Desses lugares cheios de pousadas de alemães, franceses, italianos e paulistas: pessoas que chegaram lá para visitar e resolveram deixar tudo para trás em troca de um pouco de paz e sossego.

Sair de dentro daquele forno que era o teco-teco e receber o carinho da brisa no rosto em meio ao coqueiral, era simplesmente uma bênção. Andamos todos, Adrian, piloto, equipe de filmagem e eu, e chegamos até um píer no rio onde uma pequena lancha nos aguardava. Embarcamos e fomos navegando em águas calmas, a inacreditável paisagem descortinando-se aos poucos diante de nossos olhos. Cheguei a me perguntar se o aviãozinho não havia caído: vendo o lugar à minha volta, parecia que eu tinha passado desta para uma melhor.

- Doutor Adrian, onde vamos? – perguntou o marinheiro da lancha.

- Vamos começar pela pousada de Giancarlo. – respondeu Adrian.

Era o início de uma agradável peregrinação entre pousadas e praias divididas entre rio e mar. O cinegrafista não desligava a câmera um só instante. Tamanha beleza, muitos eram os lugares para se apontar as lentes.

A última parada foi uma pousada que realmente me surpreendeu. Se eu não tiver grana para passar a lua-de-mel no Tahiti, tenham certeza: é na Alizées Moreré que vou encomendar meu herdeiro. O simpático dono do lugar nos convidou para almoçar e, como bom francês, foi pessoalmente até a cozinha preparar nossos pratos. À sombra da vegetação local, entre jaqueiras e mangabeiras, ao som ambiente de variados cantos de pássaros e espaçadas ondas do mar quebrando na areia, tomamos algumas cervejas e almoçamos.

O marinheiro da lancha, um jovem nativo de Boipeba, estava presente na mesa e eu notei que ele bebia com certa empolgação. Como ainda não existe blitz do bafômetro no mar, pra mim estava tudo certo, não dei muita atenção.

- Pierre, nos acompanha na lancha até o criatório de ostras? –Adrian fez o convite ao nosso anfitrião.

Imagine que no meio do rio existe esse criatório de ostras. Ao chegar lá, um sujeito mergulha e traz a iguaria pra você, fresquinha. Vida chata, não? Infelizmente, não foi possível conhecer o lugar: quando imaginei que o teco-teco era a maior ameaça às nossas vidas, chegou a vez do mar e do nativo fazerem a sua parte.

Ao entrarmos de novo na lancha, lembro do cinegrafista perguntando:

- Vai molhar? Essa câmera não pode receber respingos...

- Não, daqui até lá teremos poucas ondas. – respondeu o jovem marinheiro.

Então, o cinegrafista ligou de novo a câmera e passou a registrar o cenário – insisto no adjetivo – indescritível. Para ter uma visão privilegiada, fui até a frente do barco e fiquei de pé, pensamento perdido em algum canto, apenas observando centenas de cartões postais fora do papel. O resto do pessoal viajava sentado no banco em formato de meia-lua que havia no fundo da lancha.

Eufórico, o marinheiro falava sem parar e ia conduzindo o barco olhando para trás enquanto conversava com os outros passageiros. Quando chegamos próximos à entrada da barra que liga o mar ao rio, as águas começaram a ficar levemente convulsas. Logo mais à frente, água doce e água salgada pareciam não entrarem em acordo: juntas, formavam nervosas e perigosas ondas. Não me preocupei, afinal, estávamos sendo conduzidos por um nativo, alguém que supostamente conhecia com exatidão as armadilhas do lugar.

Com considerável velocidade, nos aproximamos das vagas em fúria. Imaginei que logo o marinheiro reduziria o ritmo para vencermos as ondas com tranqüilidade e segurança. Ledo engano. Só houve tempo para um breve e inútil grito meu:

- Olha a onda!

Do jeito que viemos, saltamos uma verdadeira rampa d´água. Casco e motor ficaram completamente fora do mar. Em milésimos de segundos, ainda com a lancha em pleno vôo, percebi o movimento da proa inclinando para frente. Era um sinal claro de que a lancha iria embicar e o impacto seria exatamente onde eu estava. Tentei correr para a popa, mas só deu tempo de me virar. Quando o bico do barco afundou na água, um verdadeiro turbilhão atingiu minhas costas me lançando com força para o banco do fundo, bem em cima do francês. E o cara nem fazia o meu tipo.

O estrago foi grande. A lancha estava inteiramente inundada. Para quem estava sentado, a água ficou na altura do peito. Tirando o meu celular que estava dentro de uma mochila, àquela altura boiando, todos os outros celulares foram definitivamente inutilizados. Meu joelho doía muito por conta de um impacto em algum lugar, provavelmente no próprio Pierre.

Após nos certificarmos de que todo mundo estava bem, presenciamos uma cena que emudeceu a tripulação por uns 5 minutos: o cinegrafista, desolado, elevando lentamente a câmera que estava totalmente submersa na água salgada. Uma câmera de 25 mil reais, provavelmente mais cara que a embarcação quase naufragada. Se tivesse morrido alguém ali, o diretor de filmagem não teria feito uma cara tão feia quanto fez ao ver a água jorrando de dentro do seu equipamento como se ele fosse um regador.

A lanchinha iniciava um processo irreversível de naufrágio enquanto o marinheiro, agora desesperado, acelerava ao máximo o motor. Mesmo assim, o barco deslocava-se lentamente, arrastando-se por conta do peso da água. E cada vez mais o casco ia sumindo. Eu já estava preparado para nadar, a mochila estrategicamente colocada na cabeça.

Quando tudo parecia perdido, conseguimos chegar à praia. O barulho do fundo do barco encalhando na areia era música para nossos ouvidos. Saltamos todos. Numa tentativa desesperada de salvar a câmera, a equipe de produção saiu correndo alucinada em busca de um pedaço de pano seco. Em meio a palavras duras, Adrian não perdoava o marinheiro que mal conseguia responder, escabriado pela própria irresponsabilidade e desolado pelo prejuízo que sofrera.

O francês despediu-se de nós, arrumou uma outra lancha e voltou para sua pousada – o coitado só pegou uma carona pra perder o celular. Nós também arrumamos uma outra lancha e voltamos para o aeródromo. O clima na equipe de filmagem não era dos melhores, o silêncio era incomodativo. Talvez isso tenha tirado um pouco o foco do desespero que precederia meu embarque.

Assim como na ida, adivinha quem foi no comando? Ele mesmo, Adrian, o aspirante a piloto, alguém com, no máximo, uma dezena de horas de vôo. A pista era uma atração à parte: após sua cabeceira, havia um curto coqueiral e logo mais vinha o mar e seu azul sem fim.

Todos de volta ao forno voador, taxiando mais uma vez para iniciar o processo de decolagem. Com certa dificuldade, Adrian alinhou o aviãozinho na pista e, segundos depois, acelerou forte o motor. O bicho foi ganhando velocidade e então saiu do chão cerca de 1 ou 2 metros apenas. Manteve essa ridícula altitude por um bom tempo e eu comecei a ver a pista ficando curta. Pensei que o teco-teco apresentava algum problema e não estava conseguindo ganhar altura.

- Adrian... – sussurrei.

Através do pára-brisa do piloto eu via a copa dos coqueiros se aproximando rapidamente. E mais perto. E mais perto.

- Adrian... – sussurrei um pouco mais alto.

Chegou um momento em que quase dava pra ver uma formiga andando em cima do coco. Aí não consegui mais segurar:

- ADRIAN! VAI BATER! #@$%*&! – utilizei cerca de 2/3 de todo o meu vocabulário de xingamentos.

Ao praticamente beliscar as palhas do coqueiro, Adrian puxou o manche todo e, ao som de uma gargalhada alucinante do desajustado empresário, o avião bruscamente iniciou uma subida a 90 graus do chão. Tratava-se de uma “brincadeira” de nosso “amigo”. Durante esta manobra, percebi que havia deixado meu estômago na pista. Mas meu pulmão decolou comigo - e ele gritava alto. Um misto de barulho infernal de motor de teco-teco, gargalhadas de Adrian e um ininterrupto brado meu. Foi assim o início da viagem.

Mesmo com o calor que fazia dentro do teco-teco, eu suava frio. Pense bem: se essas mini-aeronaves costumam cair por qualquer coisa, imagine quando alguém que está aprendendo a pilotar resolve fazer acrobacias. Meu cliente, experiente como ele só, caiu na besteira de acreditar que era piloto da Esquadrilha da Fumaça. O avião ainda subia verticalmente em alta velocidade quando eu tentei descolar minhas costas do assento e, segurando com dificuldade na cadeira da frente, me aproximei de Adrian.

- Adrian, ainda vamos continuar subindo assim por muito tempo? – disse eu, polidamente, tentando evitar que entrássemos em órbita.

- Pedrinho, meu querido, volte para o seu lugar. Assim você me desconcentra. – respondeu o inglês.

Obedeci. Não me restava fazer muita coisa a não ser rezar, pedir perdão pelos meus poucos pecados e assistir ao clássico filminho da vida que costuma passar diante dos olhos de quem vive seus últimos instantes.

De repente, o teco-teco endireitou-se e voltou a voar na horizontal. Sorte que, justamente pensando na volta, eu não abusei do delicioso almoço. Sorte! À esta altura, estaria escrevendo “A fantástica história da mala de cocô II”.

Quando nos aproximamos da pista de pouso do aeroporto de Salvador, iniciou-se mais uma surreal discussão:

- Doutor Adrian, por favor, me passe o manche para eu pousar. – disse o piloto.

- Não, eu vou pousar. – respondeu Adrian, taxativo.

- Mas doutor Adrian, o senhor ainda não sabe pousar. – o piloto tentou dissuadi-lo da catastrófica idéia. Literalmente catastrófica.

- Eu vou pousar, já disse. Vá me dizendo o que fazer. – Adrian encerrou a discussão.

Pelo menos o avião vai cair em Salvador. – pensei. Eu já não tinha sequer mais forças para entrar em qualquer discussão com Adrian. Tentei minha última cartada. Cutuquei o diretor de filmagem que estava ao meu lado e falei:

- Ó, ele está querendo pousar o avião...

Foi uma tentativa de fazer com que o cara reagisse. Uma forma de dizer: é melhor você fazer alguma coisa, amigo... vamos morrer. Só que o sujeito ainda estava entorpecido pela perda de sua câmera. Acho que ele nem se importaria se o teco-teco se espatifasse no chão: já tinha perdido a câmera dele mesmo, o que seriam mais 6 vidas?

Diante do silêncio do rapaz, só me restou acompanhar o avião fazendo zigue-zague enquanto buscava alinhar-se com a pista. O piloto ia ajudando:

- Vira para a esquerda, vira para a esquerda... não, não, passou do ponto... vira para a direita, vira para a direita. Pra direita, doutor Adrian!

Torre de controle, estacionamento, hangares de carga, aviões estacionados. Adrian apontava a frente do avião para todos os lugares, menos para a pista.

- Está muito rápido, doutor Adrian. Reduz a velocidade! Não, doutor Adrian, reduziu demais, acelera, acelera.

Engrenei um Pai Nosso seguido de uma Ave Maria. Metade da pista já havia passado embaixo de nós e Adrian não conseguia fazer o avião descer. De repente, pelo som do motor em baixa rotação, percebi que meu cliente havia desacelerado bruscamente o teco-teco numa tentativa desesperada de fazê-lo pousar. Foi então que, há uns 10 metros do chão, o aviãozinho desceu que nem uma pedra. Quando as rodinhas bateram na pista o impacto foi tão grande que achei que nossa latinha voadora iria se desmantelar. Assim como a minha coluna: deu pra ouvir umas 2 vértebras estalando.

Estranhamente, o avião subiu de novo. Ficou mais uns 3 segundos no ar e voltou a descer com tudo novamente. Mais um impacto e mais um desvio em minha escoliose. Mais uma meia-dúzia de vezes subimos e descemos como uma bola quicando até os dois conseguirem fazer o maldito teco-teco parar.

- Doutor Adrian, com todo o respeito: a torre deve estar pensando que eu estou bêbado. – deixou escapar o piloto.

O documentário jamais foi editado: as fitas ficaram inutilizadas pela água do mar no naufrágio da câmera. A produtora perdeu seu equipamento mais valioso. Eu não saí no Jornal Nacional. Aí você me pergunta: então todo esse terror serviu pra quê? Serviu para eu descobrir que, ao contrário do que nos ensinaram, o paraíso é na terra e o inferno certamente é no céu.

23 comentários:

Anónimo disse...

Nossa Peu...as nossas praias ainda são as melhores, mas a sua viagem não foi das melhores aventuras!!
Interessante a idéia da lua-de-mel no Brasil, mas vê se não vai de teco-teco...será q esse hifens ainda existem? rs
bjus

Anónimo disse...

Ah! Adoro ser o primeiro comentário rs
boa semana!

Dani disse...

Coitado do cinegrafista!!! Fiquei realmente com pena dele!
Curti o post!!!
Beijoss

Larissa Fonseca disse...

auhauhauhauhauhauha
coitado do cara! aliás, coitados de todos vcs que passaram por toda essa trágica viagem!!

beijao!

Dedinhos Nervosos disse...

Caramba... eu acho que tinha matado esse maldito Adrian, mas antes o nativo já teria sido virado isca de peixe. Ninguém merece tanta gente irresponsável num só viagem!!! Fiquei tão danada com esses que nem ri de nada! Mentira, ri com o "olha a onda!" rsrs
Bjos!

Anónimo disse...

Pode dizer pedrao!

você já estava com esse final pronto antes de começar a primeira parte! huahuahua

grande abraço!

Anónimo disse...

Peu, suas estórias melhoram dor de cabeça mais do que 2 neosaldinas!!!!!

Bjs,

Lai

Val disse...

Essa parte do paraíso na terra e o inferno no céu, nesse caso se aplica. Mas a melhor parte foi a da lua de mel...depois te conto minha impressão e se vale a troca pelo Tahiti. Vc se supera a cada história. Beijos

Paula disse...

Pedro, numa boa, esse Adrian em uma corrida de tartaruga seria um perigo absurdo!

CAramba, teco teco e lancha com olha direito a "olha a onda" é demais!

beijos

Anónimo disse...

PAREI aqui e que bom... Como?? Hum... Procurando algo diferente, como qse sempre.

Você consegue transformar "tragédias" em situações engraçadas: interessante!!!

Gostei do Blog, passarei mais vezes..

Desejo uma boa semana para você.

Pedro Valente disse...

vc sempre foi bem medroso assim mesmo... um aviaozinho q perigo tem?? ehehheheh

Pedro Valente disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

peu,
muito boa palavreagem!
quero a nossa história aqui!! hehe - pode detalhar a minha cara de desespero.hahaha
beijocas,

Anónimo disse...

Peu , seu blog é como um "remedinho" pra mim depois que eu leio passa tudo...
Beijos

eu... disse...

Ah eu teria matado esse seu cliente...isso é,se eu tivesse sobrevivido,pois certamente depois dessa 'aventura nas alturas' eu estaria é mortinha..rs

beijo.

Anónimo disse...

Peu!! Adoreeei como de costume,só nao consigo imaginar vc com sua educaçao falando aquele monte de palavroes!!! rsrs...
Que aventura heim?! Beijo grande!!

Anónimo disse...

Faz tempo que não apareco por aqui...
Tive uns probleminhas familiares...
Mas agora estou voltando,com saudades de suas histórias.
Um bjão,
Carla (dentista de São Paulo)...Lembra?????

Anónimo disse...

meu pai realmente se equivocou! voce postou outras coisas e eu fiquei com a informacao errada que ele me deu... agora recuperei as leituras! ainda bem =) continuo gostando e muito dos seus textos, maravilha!
que bom que voce respondeu ao comentário! realmente não sumi, tá vendo? e não quero sumir mesmo, ainda mais depois de falar com voce hoje no telefone! quando vou ouvir mais histórias? será que terá a presença de tio fulano novamente?!
um beijão

Pedro Valente disse...

me diga por favor q dps da saga no teco-teco... vc vai escrever sobre a saga de lucifer... POR FAVOR!!!

Anónimo disse...

não me lembro a ultima vez que ri tanto na minha vida.... fiquei com as bochechas doendo, de verdade....

Evandro Varella disse...

Esse passeio foi "massa" ... Não é assim que se fala(va) por aí?

Agora eu fiquei pensando, será que quando você entrou no teco-teco, você pediu um passeio com "emoção"??

Bacana, muito bacana!!!

Abraços

Vavá

Dedinhos Nervosos disse...

Vc viu que semana passada caiu um monomotor????

Unknown disse...

podia demora mais um poco pra postar uma nova historia