segunda-feira, setembro 14, 2009

Conte comigo para soprar velinhas, cisco no olho, ferida com merthiolate. Só não me peça para soprar bafômetro.

Desculpem. Eu sei que a próxima história deveria ser o segundo capítulo da viagem ao Chile, mas preciso contar algo que aconteceu comigo há algumas semanas antes que eu esqueça de alguns detalhes. Até porque, um episódio como esse, tem mais é que ser esquecido.

Era dia de Bahia Recall, o maior prêmio da propaganda baiana. A Boanova era finalista pelo terceiro ano consecutivo na categoria rádio. As duas peças anteriores bateram na trave e não entraram. Dessa vez, confesso que estava confiante. Resultado: não levamos o caneco. Vá lá, somos a única agência de pequeno porte que tem estado sempre entre os finalistas, mas não deixei de ficar frustrado. E ainda: esse foi o primeiro ano que, após o prêmio, eles não ofereceram uma festinha. Um absurdo.

Após sairmos de lá de mãos vazias, fomos todos para um barzinho de propaganda que tem aqui, o 30 Segundos. Chegando ao lugar, cercado de muitos amigos do mercado – sem dúvida o maior prêmio que a propaganda já me deu até hoje -, resolvi beber um pouco (um pouco de eufemismo não faz mal a ninguém). Whisky com Red Bull. Mas manerei no energético: apenas o suficiente para me manter acordado sem dar parada cardíaca.

Depois de algumas doses, lembrei da pauta de criação e dos prazos estourados que me esperavam no dia seguinte - lampejo suficiente para me fazer voltar pra casa. Me despedi do pessoal e fui embora.

No carro, ia eu bem devagar, atentamente mirando as linhas que delimitavam o meio da pista, bêbado prudente, na velocidade que meus reflexos permitiam. Após uma curva na avenida ACM, eis que me vejo no clássico corredor de cones de uma blitz. Terça-feira! O que esses caras querem numa madrugada de terça-feira? – me perguntei. Enquanto ia passando lentamente pelos cones, pensei em parar o carro no meio da rua, passar pro banco do carona e, quando algum policial chegasse, eu diria que o motorista havia fugido, me largando lá. Acabei encarando a blitz.

Ao chegar no recuo da rua onde os agentes da SET estavam instalados, já havia um deles no meio da pista fazendo sinal para que eu encostasse. A descarga de adrenalina rapidamente tratou de cortar um pouco o efeito do álcool. Parei o carro, abri o vidro. O agente falou com aquele tom de voz característico de “otoridade”:

- Documentos do carro e habilitação.

Já meio puto por imaginar que ao invés do prêmio eu havia ganhado uma multa de mil reais, também fiz questão de não ser simpático com o sujeito e tratei de procurar os documentos. Pior é que eu procurava, procurava e não encontrava. Meus movimentos eram meio lentos e eu deixava as coisas caírem das minhas mãos no assoalho do carro. A verdade é que nem precisava de teste do bafômetro.

Depois de uns 5 minutos procurando o documento com o cara ao meu lado aguardando, encontrei o bendito papel. Entreguei ele junto com a habilitação. O agente deu aquela clássica examinada de expert em papéis cheios de números, deixando no ar aquele silêncio que eles devem imaginar que dão o maior medo na gente.

- O senhor fez uso de alguma substância alcoólica? – ele perguntou.

- Se eu bebi? – aproveitei pra tirar um sarro da erudita linguagem policial.

- Positivo.

- Um copo. – omiti alguns mililitros.

- Por favor, sopre aqui este bafômetro. – disse o agente enquanto retirava um negócio parecido com uma língua de sogra de dentro de um saquinho.

Minha mente de alcoolizado, por algum motivo, concluiu que aquilo era imperativo demais, um certo abuso de poder. Resmunguei chateado:

- Não vou soprar nada não.

- Ah, o senhor não vai soprar? – perguntou, enfático, a autoridade máxima daquele metro quadrado de avenida de Salvador.

- Não.

- Então o senhor se recusa? – o agente insistiu.

- Me recuso.

- Neste caso, a multa pode chegar a 950 reais. – ele me olhou com uma cara que, salvo engano que a bebida pode ter me gerado, poderia interpretar como: “que tal pagar agora com desconto?”.

Devolvi a ele um olhar com ranger de dentes de “não deixo em sua mão nem um centavo”. Afirmei:

- É a lei...

- Por favor, me acompanhe.

Fui parar numa mesa branca de plástico, parecendo mesa de boteco, onde um segundo agente preenchia fichas de outros supostos infratores da lei. Se eu estivesse de bom humor, levantaria o braço e chamaria um garçom. Mas, eu só pensava nos mil reais que eu estava jogando fora naquele fim de madrugada. Calado estava, calado fiquei. Ainda ocupado com devaneios e lamentações, fui surpreendido ao ver como o trabalho desses caras é divertido.

Primeiro, uma senhora foi parada pelo mesmo sujeito que me parou. Eram umas 3:30 da manhã e ela estava com um vestido de festa. Não havia mais sinal algum do belo penteado que aquela mulher devia ter feito no salão - a maioria dos fios apontava o céu. Imaginei o terror que aquela tiazona tocou na pista de dança.

- Documentos, por favor. – disse o algoz dos alcoolizados.

A mulher, prontamente saiu do carro, deu uma cambaleada e, enquanto seu carro seguia em frente por falta de freio de mão, foi logo falando:

- Meu filho, eu estava num velório! – disse a senhora enquanto alguns policiais da guarda municipal corriam atrás do seu veículo.

- A senhora fez uso de alguma substância alcoólica?

- Não, meu filho, eu estava no cemitério dando apoio a uma família que...

O agente, provavelmente bastante acostumado com as desculpas esfarrapadas que ouve todas as noites, interrompeu a mulher:

- Por favor, sopre aqui este bafômetro.

- Soprar aí? – perguntou, receosa, a anciã.

- Sim, senhora.

- Tá bom... – após uma pequena pausa de insegurança, a mulher completou – aliás, não, obrigado.

“Obrigado”. Acho que ela imaginou que estavam oferecendo a ela um drink. Depois de um “siga-me, por favor” do agente, a senhora juntou-se a mim na mesa branca. Mesmo com minha cara-de-acabei-de-perder-mil-contos nada convidativa, a tia resolveu puxar papo comigo. Inclinando-se em minha direção, sussurrou ela:

- Você bebeu, meu filho?

- Um copo.

Com um sorriso, misto de orgulho e ingenuidade, a senhora me confidenciou:

- Eu bebi mais...

Quase pergunto quem era o pobre coitado cuja morte ela estava comemorando. Continuei calado. Nisso, mais um carro é parado. Dessa vez, uma jovem. Suas roupas também denunciavam que a sua procedência era festiva. Girei o corpo na cadeira para poder assistir a mais um show de mentiras. Mas, a reação da moçoila foi inesperada.

- A senhora consumiu álcool?

- Consumi. – respondeu a menina, rápida e sincera.

- Então, por favor, sopre aqui.

- Meu amigo, a esta altura eu não acerto mais soprar, não... só consigo chupar.

A velha olhou pra mim como quem diz: “cada um suborna com a sua moeda”. A menina saiu do carro e a mesa branca ganhou mais um integrante. Diante de nós, a garota reclamava revoltada, falava alto, gesticulava, dizia que mil reais era um roubo, que aquilo tudo era um assalto. Comecei a torcer pra ela ser presa. Afinal, a mesa já estava ficando apertada e tudo o que a gente não precisava era desse tipo de bêbado que gosta de tumultuar. Os bêbados ali presentes, até então, eram do bem.

Nesse meio tempo, chegou um rapaz pra lá de Bagdá que mais parecia Tarso, o garoto esquizofrênico da novela. Em pé, diante da mesa branca, ele repetia sem parar:

- Eu tô sem habilitação, não vou mentir... não vou mentir que eu tô sem habilitação...

Demonstrando impaciência, o agente que preenchia as fichas apenas levantou lentamente os olhos para ele. O rapaz continuava a atropelar palavras:

- Eu moro em São Paulo... eu sou daqui, mas moro em São Paulo... minha habilitação ficou lá.

Depois de um demorado suspiro, sinônimo de cansaço, o agente perguntou com certa indignação:

- O senhor se nega a soprar o bafômetro e ainda dirige sem habilitação?

- Eu não vou mentir pro senhor, eu tô sem habilitação... eu tô sem habilitação, não vou mentir...

Que bom que ele não mentiu. Só não entendi até agora como é que o sujeito pretendia mentir diante do fato de não estar com a habilitação. Será que ele achava possível falsificar uma ali, no meio da blitz? Enfim.

Tarso esquizo ainda ruminava palavras quando mais uma bêbada chegou. Também recusou-se a soprar o dito cujo e foi parar na mesa. Ali, eu assisti de camarote como o álcool pode ser seu aliado até mesmo numa blitz de lei seca. Enquanto eu estava emburrado, a velha, muda, a menina, revoltada e o rapaz, tan-tan do juízo, a nova integrante da turma chegou com aquele astral de quem tomou umas a mais.

- Moço, como é seu nome?? – perguntava a garota ao agente, num movimento de corpo que sugeria uma dança.

[silêncio]

- Moço, me diz, vai, qual seu nome? – ela insistia com um simpático sorriso no rosto.

- Agente Ferreira. – balbuciou o homem.

- Mentira! Ferreira? É o sobrenome de minha melhor amiga! Se for gente boa que nem ela... ah, moço, já gostei de você! – e, inacreditavelmente, deu um abraço no carinha.

Os outros sujeitos da SET riram e o sisudo agente Ferreira desanuviou o semblante.

- Sargento Ferreira, trabalhar a essa hora da madrugada é horrível, né?... Tenente Ferreira, jure que você não vai me multar... – enquanto fazia graça, a garota espertamente ia aumentando a patente do cara.

- Capitão Ferreira, se eu fugir com meu carro agora, você finge que não vê?

Enquanto todo mundo ria, inclusive o agente Ferreira, eu notava que ninguém fichava a garota na tal mesa branca. Só via a minha ficha, a da senhora, a da revoltada e a de Tarso sendo preenchidas.

- Major Ferreira, não me dê multa não! Eu tô querendo casar e preciso economizar dinheiro. Só não achei o noivo ainda...

Parecia stand up comedy no meio da rua às 4 da matina.

- ... e olha que nessa festa de hoje eu procurei, viu!

Maldita, pensei. Mas, também, não ia pegar bem eu abraçando o agente Ferreira naquele fim de madrugada.

- Coronel Ferreira, você me consegue uma folha de papel e caneta? – perguntou a candidata a comediante.

Com o que havia pedido em mãos, a garota começou a escrever e a ler sua obra em voz alta:

- Pro-me-to nun-ca mais be-ber e di-ri-gir. Pro-me-to nun-ca mais be-ber e di-ri-gir. Pro-me-to nun-ca mais be-ber e di-ri-gir. Se eu escrever mil vezes essa frase aqui no papel, você me libera da multa, General Ferreira?

Após algum tempo, para me tirar dali, chegou Livinha, minha irmã. Veio sorrateiramente por trás de mim e cochichou:

- Tenho 100 dólares aqui na carteira. Quer tentar?

Daria uns 5 dólares pra cada agente. Mas, pelo que eu percebi, a moeda da noite não era cifrada. Agradeci a oferta e já ia perguntar a Livinha se ela sabia sapatear, fazer mímica ou algum número de mágica. Só que, naquele fatídico resquício de noite, junto com minha habilitação, meu humor também tinha ido para as cucuias.