quarta-feira, fevereiro 18, 2009

- Cadê o Menino Jesus do meu Santo Antônio?

“No Brasil, muitas moças afoitas por encontrar um marido costumam retirar o bebê dos braços das estátuas de Santo Antônio, prometendo devolvê-lo depois de alcançarem o seu pedido. Por esse motivo, alguns párocos mandavam fazer a estátua com o Menino Jesus preso ao corpo do santo, evitando assim o seu seqüestro.”

– Wikipédia.


Há mais de 10 anos sou devoto de Santo Antônio, o glorioso santo português. Fato este que, quando descoberto por amigos, automaticamente traz a reboque uma pergunta:
“você quer casar, é?”. Antes que você também pergunte, já vou respondendo: não é por desespero de subir ao altar que sou devoto deste grande intercessor dos céus. Até porque, há 10 anos atrás eu tinha 20 anos e a última coisa que eu pensava àquela época era casamento. Quem sabe daqui a uns 5 anos, se eu ainda não estiver casado, minha devoção não ganha um novo viés?

O fato é que nunca se ouviu dizer de alguém que tenha recorrido a este poderoso santo e tenha sido esquecido. Abandonando a riqueza e dedicando-se à caridade, sua breve vida na terra foi marcada por inúmeros milagres. Entre eles, a visão que um conde que hospedava Santo Antônio teve: curioso para ver o famoso frei orando, o nobre, espreitando através de uma fresta que existia na porta do seu quarto, assistiu maravilhado ao cômodo inteiro resplandecer e Nossa Senhora, cheia de júbilo, entregar nas mãos do santo o Menino Jesus.

É por isso que, em quase todas as representações de Santo Antônio, ele está carregando no colo uma criança. Sendo assim, acho inconcebível que alguém, hereticamente, separe os dois para arrumar um namorado, um noivo ou algo do tipo. Principalmente se isso for feito em alguma de minhas imagens deste grande protetor dos pobres.

Pois chego eu em casa esta semana e, ao entrar no meu quarto, notei algo de muito estranho: o meu mais valioso Santo Antônio – valioso por ser antigo e mais valioso ainda por ter pertencido à minha avó – de costas, virado para a parede. Na mesma hora lembrei que esta era uma das inúmeras simpatias que as pessoas costumam fazer para desencalhar. Resumindo, ou algum espírito de porco resolveu fazer piadinha comigo ou aquilo era obra de uma das 4 mulheres de minha casa – todas solteiras.

Segurei no aveludado hábito azul da imagem e virei o santo para a sua posição original. Quando ele estava de frente pra mim, o susto aumentou: o Menino Jesus havia sumido das mãos de Santo Antônio. “Alguém está desesperado, fez duas simpatias ao mesmo tempo para garantir o fim da solteirisse”. – pensei.

Fiquei angustiado. Onde estaria a bela imagem da criança? Será que caiu no chão? Será que quem escondeu lembra onde colocou? A vontade que eu tinha era de acordar todo mundo para perguntar sobre o paradeiro do Menino Jesus. Mas eram 3 da manhã de um dia de semana. E o pior é que eu não iria conseguir dormir fácil, estava perturbado com a história. Revirei meu quarto do avesso e nada.

De repente, ouvi um barulho no banheiro do corredor. Corri para a porta e fiquei esperando a ocupante do lugar sair. Era minha irmã.

- Lica, por acaso você pegou o Menino Jesus de meu Santo Antônio? – perguntei.

Pela cara que ela fez de “não entendi nada”, automaticamente a isentei de qualquer culpa. Procurei explicar:

- Cheguei no quarto e encontrei o santo virado para a parede e sem o Menino Jesus nos braços. Alguém aplicou no santo, de uma só vez, duas simpatias de casamento.

Ela disse que não era a responsável pelo sumiço e que também achava difícil que tivesse sido Simone, nossa outra irmã.

- Ontem eu vi a gata andando por esta prateleira. Será que ela esbarrou nele? – disse Livinha enquanto analisava a cena do crime.

- Sua gata é esperta, Lica. Mas não o bastante para fazer simpatias. Agora falando sério, será que ela engoliu o Menino Jesus? – cogitei o pior.

- Não, não, deve estar por aqui em algum lugar. – respondeu Livinha, tentando evitar que eu dissecasse a barriga de seu animalzinho.

3:30 da manhã e a gente arrastando cama, criado-mudo, armário; remexendo livros e mais livros na prateleira. Nada da pequenina imagem. Antes que todos os vizinhos do prédio nos linchassem, resolvemos dormir e continuar a busca no dia seguinte. Deitei e, antes de pegar no sono, fiz uma prece, pedi para que meu santo advogasse em causa própria:

- Poderoso e fiel Antônio, guardião de todas as horas, meu prodigioso intercessor junto a Deus, rogo-te: vós que sempre encontrais o perdido, clareais o oculto e que me fazeis orar no presente do indicativo, ajudais no reaparecimento da imagem do amado Menino Jesus. Que ainda esta manhã Ele apareça e volte definitivamente para vossas mãos. Amém.

Acordei e, antes mesmo de tomar banho e escovar os dentes, corri até a cozinha em busca de notícias do bem-aventurado filho de Maria. Ao perguntar se alguém tinha encontrado a imagem em algum lugar, todos riram: Rosa, a jovem e tímida empregada da casa, no dia anterior foi limpar meu quarto e encontrou o Menino Jesus entre o colchão e a lateral da cama. Pensando ela que se tratava de uma simpatia minha, arrumou a cama e, cuidadosamente, recolocou a pequena imagem embaixo do colchão. Afinal, macumba e simpatia há de se respeitar.

Como ninguém assumiu a autoria do seqüestro do primogênito de Deus, nos restou aceitar a teoria da gata andando pela prateleira, girando a imagem ao passar por ela e derrubando o Menino Jesus entre o colchão e a cama.

Acaso? Um sinal dos céus? Prenúncio divino de um desencalhe? Não sei. De qualquer modo, fica a minha particular leitura do ocorrido: hoje em dia, o que não faltam por aí são gatas doidas pra casar. De quatro patas ou duas pernas.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

O sultão e seu trono.

Existe um bloco de carnaval aqui em Salvador chamado Harém. Olha só o nome: Harém. Admito que a idéia, o conceito que os caras criaram, é genial. Eu ainda não sou pai, nem nome pra minha filha eu tenho, mas, quando ela nascer e ficar mocinha, acreditem, ela jamais vai sair no Harém. Eu não vou deixar.

O lance é o seguinte: as menininhas bonitas de Salvador são convidadas para sair no bloco. De graça. Uma semana ou duas antes do carnaval elas são tatuadas com aquela tatuagem tipo de chiclete com a seguinte mensagem: “Princesinha do Harém”. Um negócio bizarro, gigante, bem no meio do braço. As mulheres ficam marcadas como gado depois de ferrado. O abadá só é dado no primeiro dia de carnaval. Ou seja, se a garota tirar a tatuagem um dia antes, já era, nada de festa.

Isso tudo é uma estratégia e tanto. Os marmanjos vêem as gatinhas na rua e pensam: “nossa, ela vai sair no Harém. Tenho que sair também”. E aí, meus amigos, pra homem não tem moleza, tem que pagar pra ter um dia de sultão.

Confesso que se eu fosse mulher ia me sentir um tanto quanto prostituída. Estaria ali de graça apenas para servir de isca pra um monte de tarado. Mas enfim, carnaval é festa do coisa-ruim. Peço até licença para uma súplica: Senhor, me ajude a ter dinheiro para mandar minha filha pra Disney, Europa ou Austrália toda vez que o carnaval chegar. Também, se as cifras não forem suficientes, Ilha de Itaparica está servindo.

Tá bom, não vou cuspir no prato que comi e venho comendo desde dezembro. Aos domingos deste nosso verão acontece o Ensaio do Harém e eu, como solteiro que estou, tenho ido a todos. Todos. Os seguranças da entrada nem me revistam mais. Quando eu apareço com a ficha na mão, a mulher do bar já se antecipa: “- Seu Pedro! A Smirnoff Ice de sempre?”. Sem contar que eu já decorei a ordem de todas as músicas do repertório e até mesmo as piadas sem graça do tecladista da banda.

O lugar é bem legal, no meio de uma floresta. O palco fica no centro, de maneira que ele não tem nem frente, nem fundo, nem lados. Ou seja: onde quer que você esteja, está sempre diante da banda. As mulheres da festa são realmente bonitas. A esmagadora maioria usa salto bem alto, maquiagem carregada com um contorno prateado nos olhos estilo “Blade Runner” e a saia mais comprida que eu vi por lá é menor que qualquer cinto meu. Mas, não chega a incomodar.

Meu companheiro de todos os ensaios do Harém é Pablo. Pablo, pra quem não conhece, é um sujeito de fala mansa, palavras poucas e pensadas, observador, movimentos e gestos lentos. Durante a festa, a cada 10 minutos, ele obedece ao seu sagrado ritual de ir buscar uma cerveja no bar. Esse é o momento em que costumamos nos perder um do outro.

Foi num desses dias de desencontro que, pela primeira vez, eu me compadeci de Pablo: ao final da festa, nos reencontramos perto do portão de saída. Ele estava pálido, fantasmagórico, olhos arregalados, andava a passos curtos. Cheguei a pensar que ele estava com hemorragia interna.

Meu companheiro de farra aproximou-se de mim e, próximo a meu ouvido, sussurrou:

- Peter... estou com dor de barriga.

Tinha tudo para ser engraçado, para eu dar uma gargalhada na cara dele, mas não. Por um instante, me imaginei nesta mesma situação e pensei o quanto seria caótico estar em meio a uma multidão, cercado de meninas bonitas, um monte de gente conhecida e simplesmente não ter um banheiro decente para resolver este tipo de problema.

Segurei forte em seu braço. Fiquei em silêncio como quem recebe uma notícia trágica. Eu precisava pensar. Mas Pablo não tinha tempo, seu corpo havia entrado numa guerra dramática contra ele:

- Peter... vou ter que ir ao banheiro químico. – disse o pobre rapaz com a voz sumindo aos poucos.

- Não! - respondi taxativo.

Ir a um banheiro químico, num ensaio de carnaval, bem no fim da festa? Eu não podia deixá-lo perder a dignidade daquele jeito.

- Agüente firme. – disse enquanto puxava Pablo pelo braço em direção à saída.

Ele parecia ancorado no chão, arrastava-se a passos pausados. Vivia um esforço sobre-humano de concentração para evitar o pior. Como se não bastasse a situação, todo mundo caminhava em ritmo de passeio dominical. Íamos os dois em zigue-zague passando pelas pessoas, torcendo para não encontrar ninguém conhecido – não havia tempo para um cumprimento sequer.

Lembrei que havíamos estacionado longe. Vez ou outra Pablo soltava um gemido quase mudo enquanto claudicava. Nessas horas, eu imaginava: “será que aconteceu?”. Ele negava. Quando chegamos no carro, Pablo balançou negativamente a cabeça e disse:

- Não vai dar. Vou no mato.

O mato ao qual ele se referia era nada menos que uma mata virgem, fechada, impossível de entrar. Em qualquer outro lugar, ele ficaria visível para aquela multidão que caminhava para seus respectivos veículos. O cara é um empresário, imagina se um cliente dele o visse nessa deplorável situação.

- Pablo, segure mais um pouco. Vou tirar você daqui... – tentei animá-lo.

Ele entrou mudo no carro, sentou-se com um cuidado maior do que se estivesse sentando numa caixa de ovos. Arranquei com o carro como se o pobre coitado fosse um off-road. Ignorei o terreno acidentado e saí arrastando o assoalho nas inúmeras raízes das árvores que circundam o lugar. Porém, logo à frente, antes mesmo da saída do estacionamento, a má notícia: engarrafamento. Provavelmente, com tanta cachaça na cabeça, muitas pessoas perderam o ticket que liberava a saída do carro. Pablo olhou para mim e, num tom de súplica, pediu:

- Deixa eu ir no mato...

- Tente se acalmar, a gente vai sair daqui já, já. – os carros começaram a andar lentamente e eu completei. – não disse? Tá saindo...

Pablo conseguiu buscar uma ponta de presença de espírito:

- Por favor, não diga que está saindo. A qualquer momento pode sair mesmo.

Com essa discreta mudança de humor, imaginei que meu amigo estivesse numa entre-safra das cólicas que retorciam suas tripas. O engarrafamento ainda durou um pouco e, homeopaticamente, o trânsito foi começando a fluir.

Confesso que eu estava morrendo de medo do trabalho ser realizado no banco do meu carro. Mas, amigo que é amigo não deixa o outro aliviar-se no mato, tampouco num banheiro químico de fim de festa. Movido tanto pelo receio de ter que trocar o estofamento quanto pela boa ação do dia, acelerei como um alucinado na Avenida Paralela. Fui rezando para não encontrarmos uma blitz pelo meio do caminho. Já pensou? Ao mesmo tempo, um multado e o outro cagado.

- Pra onde você está me levando? – perguntou Pablo, quase afônico, enquanto costurávamos por entre todos os carros da rua.

- Pra minha casa. Lá tem vaso sanitário limpo. Tem papel higiênico. Tem chuveirinho. Tem dignidade. – respondi.

- É longe... – suspirou Pablo.

- Calma. Agüentou até agora, agüenta mais um pouco. Força. Quer dizer, força não.

A cada curva, a cada lombada, sons originários das entranhas de meu amigo denunciavam que o parto era iminente.

- Segura, Pablo! – disse eu, tentando salvar meu carro.

Já cheguei na guarita do meu prédio disparando a buzina. Era o medo do terrível efeito psicológico que a proximidade com o vaso sanitário costuma produzir. A partir dali era questão de segundos. Portão aberto e entrei como uma flecha na garagem. Após estacionar, corri em direção ao elevador. Foi então que notei que Pablo não tinha saído do carro. Voltei lá rapidamente e me deparei com ele segurando firmemente no descanso de braço da porta, o pescoço duro.

- Não consigo levantar... – confessou Pablo.

- O que houve? Vazou?! – perguntei, morrendo de medo da resposta.

- Não, mas se eu levantar pode acabar vazando. – respondeu Pablo, cheio de sinceridade e pragmatismo.

Abri a porta e, com muito jeito e cuidado, o ajudei a levantar. A amplitude e velocidade dos seus passos lembravam os de um senhor de 90 anos, no mínimo. Fui na frente e abri a porta do elevador para adiantar as coisas para meu amigo. Sorte que moro no primeiro andar!

Após eu apertar a campainha sucessivas vezes, abriram a porta.

- Pablo! Que surpresa boa, meu filho... – exclamou minha mãe, braços abertos e uma vontade de conversar que lhe é peculiar.

O pobre coitado mal conseguia levantar a mão para um discreto aceno.

- Mãe, Pablo não está passando muito bem, ele precisa ir ao banheiro. – procurei salvá-lo.

Imaginando que todo aquele pesadelo estava terminando, o debilitado rapaz mal chegou à porta do lavabo e foi surpreendido:

- Nesse aí não, Pablo! Está sem água. – disse minha mãe, trazendo ainda mais desespero para quem já estava seriamente desesperado.

Pablo girou o corpo com grande esforço e foi caminhando lentamente para o corredor dos quartos. Passou por Livinha, minha irmã, deu um imperceptível e monossilábico “oi” e girou a maçaneta que descortinaria pra ele o milagre que era, àquela altura, um vaso sanitário e seus acessórios.

- Pedro! Leve ele pro seu banheiro. Esse aí está uma bagunça terrível. – dessa vez foi minha irmã quem deu fim ao sonho de Pablo.

Meu caro e já esgotado amigo olhou para Livinha e minha mãe, retirou de dentro de si o último suspiro de que era capaz de dar e, com as mãos levemente em prece, implorou:

- Por favor, pessoal... qualquer um... qualquer um...

Tirando uma freada de bicicleta na cueca, Pablo conseguiu chegar intacto até o vaso. Pelo menos, é o que ele conta. Não sei, nunca vou saber. Mas, uma coisa eu asseguro: se alguém próximo a você estiver com dor de barriga e quiser fazer no mato, deixe. Se quiserem fazer no banheiro químico do carnaval em plena quarta-feira de cinzas, deixe. Pelo bem do seu banheiro.