quarta-feira, dezembro 17, 2008

Eu, Renata e Tio Fulano pra chutar o balde.


Ela era dona de um fabuloso par de olhos verdes, duas verdadeiras tochas cor de esmeralda. Loira, cabelo liso, bem liso, pele bem branquinha, lábios cor-de-rosa. Como se não lhe bastasse ter uma beleza difícil de encontrar em qualquer esquina de Salvador, ela era atenciosa, simpática, bem-humorada. E tinha um sorriso fascinante que, não raro, me levava a um quadro de taquicardia aguda. (Desculpem o fim de raciocínio não muito romântico, mas é a descrição de paixão de um hipocondríaco).

Faffy, uma grande amiga, apresentou-me Renata na porta do Colégio Módulo, onde as duas estudavam. Eu tinha 20 anos, a garota por quem meu coração subitamente bateu mais forte tinha apenas 16. Naquele dia, havia outros colegas delas na rodinha de conversa e então trocamos poucas palavras de início. Era uma daquelas situações onde você não consegue prestar atenção em nada que outra pessoa do grupo diz. Seja porque seu cérebro está ocupado demais tentando achar um assunto para puxar com quem lhe interessa ou porque nada alheio a ela desperta a atenção de seus ouvidos.

De lá, fomos comer alguma coisa em uma loja de conveniência próxima ao colégio. Convidei as duas, Faffy e Renata, para irem comigo no carro. Recebi de minha paquera um doce e carinhoso “não”. Com seu sorriso desarmador, ela disse que preferia ir a pé já que era bem pertinho. Foi uma resposta que tinha tudo para soar antipática, mas Renata era extremamente jeitosa, educada. E, cá pra nós, ter negado a carona foi apenas mais um indício de que ela era uma garota diferente de muitas outras.

Estávamos em pleno posto de gasolina comentando as aventuras virtuais de Faffy, a adolescente hacker que uma vez foi até rastreada pela polícia. Rimos bastante, o clima descontraiu ainda mais e então me senti à vontade para tentar estreitar o contato:

- Você tem ICQ, Renata?

Eu sempre fui um cara péssimo de paquera presencial. Mas meu desempenho aumentava consideravelmente quando o ambiente era virtual. Fui rato de VP da Telebahia (vídeo-papo), mIRC, ICQ e, há algum tempo atrás, MSN. Enquanto meus amigos iam para os ensaios do Gera Samba no Clube Espanhol, eu paquerava pela internet. Era muito mais prático e eficiente. Fora que eu não bebia e, nestas festas, nunca entrava no clima. Aí é meio brabo você ir pra um negócio desses só ficar ouvindo Compadre Washington gritar “Tchannn!! Tchannnnnnn!!” e ainda não morder ninguém. (Impressionante, é só falar do mestre que meu vocabulário torna-se irresistivelmente pobre e cafajeste).

Bom, vou voltar a Renata. Por algum motivo, falar dela é mais agradável que falar de Compadre Washington.

Trocamos números de ICQ e, chegando em casa, a primeira coisa que fiz foi adicioná-la à minha lista. A partir daí, passamos a conversar com uma freqüência quase que diária. Era impressionante, nunca faltava assunto. Falávamos de tudo e quando eu percebia, horas haviam se passado. Só tinha um problema nisso tudo: eu não conseguia avaliar se existia reciprocidade no sentimento ou se ela me via como um bom amigo.

Na hora das maiores dúvidas existenciais, nos momentos em que a vida jogava em meu colo seus grandes mistérios, era ele a quem eu recorria: Tio Fulano. Tio Fulano, como muitos já sabem, é um superlativo de praticidade, um sujeito que não costuma perder tempo diante de interrogações, quaisquer que sejam elas. Exclamativo, costuma ouvir minhas questões e lamentos com certa impaciência, mas sempre os ouve. E essa inquietação na hora da escuta existe por um motivo simples: ele quer dar a solução logo, sem demora. Através de um gesto típico que inclui a palma da sua mão levantada em minha direção e os olhos fechados, ele sempre encerra precocemente meu raciocínio dizendo: - Posso falar?!

Após outra conversa virtual com Renata que me deixou com mais dúvidas do que conclusões, resolvi apelar ao paladino dos conselhos. Cheguei na casa de Tio Fulano e, após ouvir pacientemente a uma dezena de piadas pornográficas, abri meu coração:

- Meu tio, acho que estou gostando de uma garota.

- Que bom, “meu tio”! Não tem nada melhor do que se apaixonar... – disse ele com entusiasmo. E em seguida perguntou – e ela também está gostando de você?

- Esse é o problema, meu tio. Não sei dizer. – respondi com certo pesar na voz.

Como quem pergunta a coisa mais óbvia do mundo, ele me argüiu com uma leve indignação:

- E por que você não se declara?!

- Meu tio, não é simples assim. Ela pode acabar se afastando de mim. – dei a típica explicação dos medrosos apaixonados.

- Acabar se afastando o quê, rapaz, tá maluco? Mulher gosta de homem com atitude. Chegue pra ela amanhã e diga que você está afim dela! Mas não demore não, tem que ser amanhã! – disse Tio Fulano, incisivo, gesticulando, gesticulando muito.

- Mas meu tio...

- Mas, nada! Amanhã você liga pra ela e depois vem aqui me contar. – Tio Fulano interrompeu-me sumariamente.

Só um louco contraria uma ordem expressa de Tio Fulano. E louco eu não sou. Assenti silenciosamente com a cabeça e pedi a ele que me deixasse utilizar seu computador. Ao conectar-me no ICQ, quem estava on-line? Renata.

- Meu tio, olha a coincidência, ela está no ICQ. – comentei, empolgado.

- ... combine logo seu encontro amanhã... – disse Tio Fulano, impaciente.

Conversei alguns minutos com a garota que fazia o tempo voar e, por conta de um enorme copo de suco que meu tio havia me servido, fui obrigado a levantar e ir ao banheiro fazer xixi. Coisa de 2 minutos. O suficiente para, no retorno, flagrar Tio Fulano sentando tranqüilamente à frente do computador. Fiquei desesperado, protestei de todos os jeitos. Ainda o vi terminar de escrever na tela de Renata, ao som espaçado de quem cata milho no teclado:

[caps lock]

Q-U-E-R-O N-A-M-O-R-A-R C-O-M V-O-C-Ê. E A-Í?

[enter]

Não dava para acreditar que ele tinha feito aquilo. “QUERO NAMORAR COM VOCÊ. E AÍ?”. Eu preparando terreno com todo o cuidado do mundo e vem ele e se declara – aliás, me declara – desse jeito. Não havia dúvidas, meu trabalho inteiro tinha ido por água abaixo.

- Meu tio, você é louco?? Agora é que essa menina não quer nada comigo. – disse eu, inconsolável.

- Relaxe, “Meu tio”. Ela vai se amarrar. – respondeu ele com direito a gíria e uma confiança que sabe Deus de onde tirou.

Nada de resposta de Renata. Eu olhava fixamente para a janelinha branca do ICQ de meu amor platônico. Nada!

- Viu, meu tio? Viu? – disse eu, emputecido.

Tio Fulano inspirou lentamente e, calado, fez um sinal de “está tudo sob controle”.

O suspense aumentava e Renata não se manifestava. Após um longo - quase eterno - instante, ela respondeu:

"Peu, você deve ter entendido errado... desculpe, mas somos apenas bons amigos... "

- Viu, meu tio? Viu? – bradei fazendo o clássico gesto de uma mão aberta batendo sobre a outra mão fechada.

Sem perder a serenidade, olhos semi-cerrados, gestos lentos, Tio Fulano respondeu:

- Você confia em seu tio? Ela está só fazendo charme. Vá por mim: a menina já está no papo...

Por que é que Deus havia me dado um tio louco? Era só o que eu conseguia pensar. Aliás, tinha outra coisa que eu me perguntava: por que raios eu resolvi contar isso a Tio Fulano? Conselheiro, tudo bem, ele realmente tinha esse dom. Mas cupido? Isso, definitivamente, era incompatível com a sua forma rápida de resolver as coisas. Por conta desse seu ato tão habilidoso, eu me meti numa sinuca de bico: se eu dissesse depois a Renata que havia sido meu tio no ICQ ao invés de mim, seria ridículo e ainda teria soado como desculpa esfarrapada de perdedor. Por outro lado, se eu assumisse a autoria daquela declaração desastrada depois de tanto cuidado ao conduzir a paquera, no mínimo, sairia da história como maluco.

No dia seguinte, entrei no ICQ. Renata estava lá. Eu não falei com ela, ela não falou comigo. Mais um dia se passou e então voltamos a nos falar, ainda friamente e sem a intimidade conquistada com tantas horas de conversa e perdida em uma única frase. Uma semana depois, estávamos namorando. Um mês depois, trocamos o primeiro “eu te amo”.

Moral da história: se um dia você tiver a honra de ouvir de Tio Fulano um “confie em mim, 'meu tio'”, confie. De algum jeito, ele sabe o que diz.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Um dia você ainda pagará pela minha cadeirinha de balanço. Um dia...


O meu reinado absoluto na casa 7 do Condomínio Pedra da Marca durou apenas 2 anos. 1 ano, 11 meses e 19 dias, para ser mais exato. Eu era o quinto filho, a raspa de tacho, nascido após um longo intervalo de 14 anos. Entre meus irmãos, havia uma grande disputa para ver quem me dava banho, quem escovava meus dentes, quem trocava minhas fraldas, quem me levava ao parque. Fui eu o responsável por trazer de volta a alegria àquela casa, arrefecida pelo crescimento dos outros 4 rebentos. Fui eu o responsável!

Então, sem mais nem menos, em uma manhã qualquer de agosto, minha supremacia chegou ao fim. Perdi a coroa. Da noite para o dia, não havia mais nenhum holofote sobre minha pequena pessoa. Os bilus-bilus, lilos-lilos e tchucos-tchucos já não eram mais pra mim. Eu ainda não tinha muita noção das coisas da vida, mas aquilo me parecia uma grande e terrível injustiça: Roberta, filha de meu irmão mais velho e primeira neta de meus pais, fez o magnífico favor de nascer.

Ela era irritavelmente fofinha, bonitinha, engraçadinha, espertinha e muitos outros inhas com os quais os adultos não cansavam de adjetivá-la. Juntava um monte de gente com cara de boba dizendo “ohhh” em volta do berço. Pessoas e mais pessoas orbitavam aquele ser minúsculo. Ei, eu continuo fofo e sei fazer coisas engraçadas para vocês rirem... - pensava eu. Mas não adiantava, meu tempo havia passado, as cortinas se fecharam para mim. E ela só sabia chorar, fazer xixi, cocô e todo mundo achava lindo.

E, falando em xixi e cocô, dizer que ela roubou meu trono não é metáfora. Quando minha rival cresceu mais um pouco, passaram pra ela o meu troninho que ficava no chão e eu era obrigado a resolver minha vida naquela colossal e desajeitada latrina, uma verdadeira prova de alpinismo e equilíbrio. Por conta disso, comecei a ter crises de prisão de ventre. Eu precisava reconquistar a atenção de todos de algum jeito. Só percebi que esta não era uma boa estratégia quando tentaram solucionar o problema com supusitórios. Fiquei curado dos episódios como que por encanto. Roberta mal havia declarado guerra a mim e já estava ganhando a sua primeira batalha.
Para meu desespero, não demorou muito e Dudu se separou da esposa e então minha querida sobrinha foi morar lá em casa. Como se já não fosse de bom tamanho as longas tardes e manhãs compartilhadas com a nova majestade, também tive que passar a dividir tudo com ela: babá, troninho, brinquedos, quarto, cachorro e – o pior de tudo – a atenção de meus pais.

À medida que crescíamos, crescia também a rivalidade entre nós. Fora que Roberta ainda muito cedo demonstrou um raro talento para a pirraça. Os resultados mais corriqueiros de suas provocações eram trocas de beliscões, tapas, unhadas, puxões de cabelo, muito chororô e castigos. Quantas vezes fiquei encarcerado em meu próprio quarto com tufos de cabelos entre os dedos? E, sob os olhos de julgo de meus pais, eu era sempre o algoz e ela, pequena e inocente, a vítima.

Como já disse por aqui, desde a tenra infância sonhava em ser médico. Mais precisamente cirurgião. Um dia, movido por esta vocação, convidei Roberta para ser minha enfermeira em um centro cirúrgico imaginário. E por um motivo simples: era a única forma dela concordar em ceder suas bonecas como pacientes.

Consegui luvas cirúrgicas, touca e máscara. O resto eram tesouras, facas, chaves de fenda e afins. Iniciamos os procedimentos e, concentrado, eu ia realizando incisões nas barrigas cheias de espumas e algodões das bonecas. Roberta, ao meu lado, colaborava passando-me os instrumentos que eu solicitava. Na verdade, acho que não era bem cirurgia, estava mais para eutanásia. Rapidamente, terminávamos com a vida e utilidade das pacientes. Quando se deu conta disso, a dona dos brinquedos abriu o berreiro, me denunciou e quase eu termino de castigo mais uma vez. Sorte que os supremos juízes aquele dia estavam de bom humor e consideraram como atenuante o fato dela ter sido conivente com a chacina.

É importante salientar que eu sempre fui uma criança tranqüila. Minha mãe dizia que em minha fase de recém-nascido, costumava ir ao meu berço ver se eu estava vivo pois nem chorar de fome eu chorava. Nem a fralda molhada me incomodava. E, apesar das turbulências que Roberta causava em minha vida, segui com esta mesma personalidade serena, quase iluminada. Minhas diversões eram basicamente revistinhas da Turma da Mônica e uns joguinhos, primitivos vídeo-games portáteis. O mundo podia acabar e eu estava sempre ali, numa boa, lendo ou jogando.

Buscando se vingar do genocídio das bonecas, Roberta resolveu pegar três dos meus joguinhos eletrônicos, os prediletos, e os atirou no vaso sanitário. Para garantir o fim das provas, ou mesmo certificar-se de que o dano seria permanente, acionou a descarga sucessivas vezes. Flagrei o fim daquela terrível cena, jamais irei esquecer: ela na ponta dos pés fazendo grande esforço para manter a descarga apertada e olhar fixo em meus brinquedos bailando naquele grande redemoinho. Com lágrimas travadas nos olhos e gosto de sangue na boca, parti como uma besta-fera pra cima dela. Prevendo Roberta sua morte iminente, disparou em direção ao quarto de meus pais gritando por socorro, um verdadeiro escândalo. De estalo, um plano para eliminar os meus problemas surgiu em minha cabeça e eu desisti da perseguição.

Eu tinha uma pequena cadeira de balanço que era o lugar onde eu mais costumava ficar. Ela era de vime e madeira, tinha uma confortável almofada com uma ilustração de um cachorro com a língua de fora. Como um moço-velho, eu vivia sentado nela, jogando e me balançando.

Pois o plano era simples: subir no telhado da casa com a cadeira e jogá-la lá de cima na cabeça de Roberta. Se tudo desse certo eu me sentiria plenamente vingado e, provavelmente, não sobraria mais sobrinha para contar a história. Eu já conseguia me enxergar de novo com a coroa na cabeça. E ela brilhava.

Assim, dei prosseguimento ao plano. Primeiro, amarrei um pedaço de corda à cadeira. Depois, subi no muro. Em seguida, icei minha arma até mim e segui equilibrando-a até o telhado. Lá, quebrei uma meia dúzia de telhas e me sentei com a cadeira ao meu lado. Busquei o ponto mais alto da casa para o estrago ser maior. Ali, num lugar em que eu jamais havia chegado, diante de uma vista maravilhosa, era só aguardar a vítima.

Com uma paciência que não é comum às crianças, aguardei uma tarde inteira. Pela raiva cultivada dentro de mim, acredito que eu seria capaz de esperar quantos dias fossem necessários para Roberta passar por ali. Após horas e horas, perto do pôr-do-sol – para o seu fim ser ainda mais poético -, minha inimiga passou pelo “X” imaginário no chão. Rapidamente fiquei de pé, peguei a cadeira, a ergui para que ela ganhasse ainda mais altura e lancei-a com uma força que só o ódio concede a alguém. Creio que a mão de Deus tenha puxado Roberta alguns centímetros para o lado. A cadeira se espatifou no chão. Sem entender o que havia acontecido, porém imaginando quem era o responsável por aquilo, mais uma vez ela saiu correndo. E, tão destruído quanto aquela minha inseparável companheira de leituras e jogos, ficou meu coração. Quanto remorso. Eu havia perdido meus brinquedos preferidos, minha cadeira de balanço, minha merecida vingança e Roberta ainda estava lá, intacta. De coroa, manto e cetro.

De cima daquele telhado, de onde ninguém podia me ver, chorei como talvez jamais tenha chorado um dia. Mais até do que quando minha pior e melhor companhia foi passar as férias de verão com a mãe em Recife e então eu descobri precocemente o que era padecer de saudade.

* Esse post é para Ró, com carinho e um beliscão. Para não perder o costume.