- Não se preocupe, você não vai ver nada. Quando você acordar, já
vai estar tudo acabado – disse Tio Fulano, tio e médico, tentando me encorajar
a fazer uma endoscopia.
A verdade é que o tempo passa, a medicina evolui, surgem terapias
genéticas, cirurgias robóticas, próteses cibernéticas, clones, genoma mapeado,
o escambau, mas alguns procedimentos parecem que não saíram da idade média. Eu
achando que no ano 2000 os carros já estariam voando, mas que nada: pra ver se
um indivíduo tem gastrite, é necessário enfiar um tubo goela abaixo.
Bom, depois de muito relutar em fazer o exame, com a clara
sensação de ter um maçarico ligado dentro da barriga, resolvi enfrentar a
endoscopia. Até porque, se a gente dorme e não vê nada, que mal haveria?
Marquei com Tio Fulano numa segunda-feira. No domingo à noite, a
pizza com os amigos deu lugar a um tedioso e sacrificante jejum. No dia
seguinte, acordei muito cedo e segui com meu tio para o hospital.
- Olhe, o serviço de endoscopia do hospital está lotado hoje...
mas aí pedi um favor pessoal a Dra. Silvana, disse que você era meu sobrinho e
ela vai te encaixar entre um paciente e outro – disse Tio Fulano ao volante,
buscando um reconhecimento do seu esforço.
- Valeu, meu tio. Mas me diga uma coisa... tem certeza que não vou
acordar com esse tubo no estômago? É que eu...
Buscando me interromper, num gesto clássico seu, palma da mão
levantada em minha direção, disse em tom firme:
- Você confia em seu tio? Esqueça esse negócio de acordar. Se eu
quiser, amputo seu braço e você nem se mexe.
O argumento era forte. Mas, ainda assim, a ideia de enfiarem um
tubo pela minha garganta até chegar ao estômago não me agradava. Já havia umas
12 horas que eu não comia nada, mas o nervosismo causado pela proximidade do
exame, misturado com a forte queimação que me afligia, afastavam ainda mais o
apetite.
- Você tem uma gastrite. E só... a gente resolve isso fácil –
diagnosticou Tio Fulano do alto de sua experiência.
- Bom, se você já sabe mais ou menos o que eu tenho, pra que fazer
esse exame? Não é só passar logo o remédio pra gastrite? – tentei um último
argumento.
- Você é idiota, Pedro? Vai tomar remédio a toa? Só esse exame pra
dizer com segurança o que você tem – disse Tio Fulano com sua paciência
habitual.
- Então não diga que você sabe o que eu tenho – rebati.
Chegamos ao hospital. Aquele característico cheiro de éter,
jalecos brancos andando por todos os lados. Pegamos o elevador com um senhor em
cima de uma maca com sondas, soros, monitores, tudo o que ele tinha direito.
Definitivamente, ali não era dos meus ambientes preferidos. Era hora de pensar
em parar de tomar coca-cola.
No pórtico de entrada, lia-se : “Gastrenterologia”. Umas quatro
enfermeiras depois, chegamos a uma sala de espera com uma porta e a plaquinha:
“Endoscopia”. Havia chegado o momento em que o ar-condicionado costuma parecer
mais gelado. Contrariando a baixa temperatura, as mãos suavam. Mas, não tinha
jeito, eu precisava me livrar daquela dor, da queimação constante, da sensação
de brasa no meio do meu estômago. Àquela altura, Magnésia Bisurada, Maalox e
Estomazil tinham tanta eficiência contra minha provável gastrite quanto João
Henrique na prefeitura de Salvador.
- Sente aí e me espere – disse Tio Fulano, enquanto rumava a
passos rápidos para a sala de endoscopia.
Era uma sala de espera pequena. Mas, com aquela frieza típica das
salas de espera de hospitais: luz branca, atendente meio de mal com a vida,
revistas que, quando tinham capa, datavam de 1992. Peguei uma edição da
Manchete TV que trazia o furo do início do namoro de Adriane Galisteu com
Ayrton Senna e me acomodei numa cadeira entre duas senhoras. Mal comecei a
folhear a revista e uma delas me perguntou:
- O que está fazendo aqui, meu filho? Tão jovem...
- Vim fazer uma endoscopia – respondi em uma tentativa de sorriso
simpático.
- Vixe, coitado... – disse a senhora, estendendo a curta frase em
tom de lamento.
- Não, mas meu tio me disse que eu vou tomar um remédio pra dormir
que não deixa a gente ver nada... – falei, tentando me convencer da minha
própria afirmação.
A outra senhora do meu lado se manifestou. Inclinando a cabeça em
minha direção, confidenciou:
- Eles falam isso para todos nós...
- A gente fica acordado? – perguntei contendo a aflição.
Duas cabeças grisalhas a balançar lentamente para cima e para
baixo em tranquila afirmação.
- A gente vê o exame todo? – insisti.
- Todo. Só faço mesmo porque tenho úlcera – respondeu uma.
- Tortura – respondeu outra.
Na porta entreaberta, surge meio corpo de Tio Fulano acenando para
mim:
- Pedro, venha.
Naquele momento, senti uma certeza que nunca havia sentido na
vida. Não me restava qualquer dúvida: eu não faria aquele exame. Nem naquele
dia, nem nunca mais.
- PEDRO – insistiu Tio Fulano.
Minhas duas mãos soltaram o encosto de braço e, vacilante,
caminhei em direção a ele.
- Boa sorte, filho – despediu-se de mim uma das senhoras.
No meio da sala, uma maca estreita. Tio Fulano conversava
amenidades com a médica. Entre uma risada e outra, apontou para a maca e disse:
- Pedro, deite aí.
Sentei naquela maca alta. Minhas pernas não tocavam o chão. Tio
Fulano e a médica pareciam estar numa mesa de bar; a conversa era solta, a gargalhada
era fácil. Meus olhos percorreram a sala toda, até encontrar ao lado da maca um
enorme tubo preto. Ele estava enrolado como se fosse uma mangueira de jardim.
Aquilo era tão extenso que, sem dúvidas, poderia varar o corpo inteiro de uma
pessoa, entrando pelo início do sistema digestivo e saindo pelo final.
- Pedro, eu mandei você deitar! – Tio Fulano recobrou minha
atenção.
Foi então que, tomado pelo mais completo pavor, busquei serenidade
e afirmei:
- Meu tio, eu pensei melhor e decidi. Não vou mais fazer esse
exame.
- O quê? - desfigurou-se Tio Fulano - Ah, mas você vai fazer. Eu
desmarquei minhas cirurgias agora de manhã, Dra. Cicrana desmarcou paciente e
você vai fazer, quer você queira ou não. Doutora, chame aí um auxiliar de
enfermagem.
- EU NÃO VOU FAZER – disse, completamente decidido.
- Não levante! Você vai fazer sim – bradou Tio Fulano.
- Você vai dormir, não vai ver nada – disse a médica em tom sereno.
- Vocês estão me enganando, eu já sei que eu não vou dormir –
disse enquanto tentava levantar da maca.
- Segura ele – ordenava ao enfermeiro, Tio Fulano.
Pegaram minha veia. Colocaram em minha boca um negócio que impedia
dela fechar.
===== 1135 DC. Começava a tortura medieval. =====
Grogue, eu ouvia, ao longe, a voz da médica:
- Pedro, engole.
Sentindo uma terrível sensação de ânsia de vômito com o tubo na
garganta, ainda era necessário engolir para que o tubo seguisse esôfago
adentro. Eu não conseguia.
- Engole, Pedro! – um pouco menos paciente que a médica, a voz de
Tio Fulano se fazia mais presente.
Querendo respirar e vomitar ao mesmo tempo, com aquele tubo sendo
forçado, literalmente, goela abaixo, acabei engolindo. O tubo foi descendo com
grande velocidade e eu tive a plena certeza de que iria morrer sufocado.
Sabe-se lá como, consegui me soltar do enfermeiro e arrancar o tubo de dentro
do meu estômago. Àquela altura, eu já não tinha qualquer esperança de dormir -
as senhorinhas falavam a mais pura verdade. Novamente, fui segurado pelo algoz
de jaleco.
- Engole, Pedro! Você só está fazendo demorar mais. Vai... – Tio
Fulano, ao modo dele, tentava me encorajar.
Sem ter como me soltar novamente e com uns 2 metros de tubo na
barriga, não me restava outra alternativa a não ser a resiliência: com os olhos
lacrimejando de náusea, aceitei a angustiante tortura. Por um instante desejei
ter mesmo alguma coisa para justificar aquele calvário. Esperei cada segundo se
arrastar.
- Tranquilo... tranquilo... – dizia, em voz aveludada, a médica.
- Tá acabando, tá acabando... – dizia Tio Fulano.
- Ghhhhhhh, ghhhhhh... – dizia eu.
O tubo foi sendo retirado e aquilo parecia que nunca iria parar de
sair de dentro de mim, tamanho era o comprimento. Eu estava livre. A vontade
era de arrancar o cateter e dar uma surra nos três.
- Você não tem nada... – disse a médica com largo sorriso no rosto
– apenas uma leve gastrite.
Olhei para Tio Fulano. Ele me fitou afirmativo:
- Viu aí?
Jamais entendi esse "viu aí?".
Hoje, quando sinto qualquer indício de queimação persistente,
começo logo um tratamento com Pantoprazol de 40 mg. É meio que automedicação,
mas funciona bem. Ao invés de uma endoscopia, era isso que todos os médicos
deveriam receitar a seus pacientes. Sejam eles médicos brasileiros ou médicos
de Fidel.
7 comentários:
Bem que eu tava morrendo de saudades de seus textos. Olhe que desta experiência, conheço bem. Mas só você tem maestria para escrever essas maravilhas que exijo ver em um livro. Vou voltar a cobrar de vc.
Aguardando próximo texto Pedro... são muito bons ... engraçados!!
Tive crises de riso com seu texto (é o primeiro que leio aqui). Já fiz endoscopia umas 8 ou 10x. Tenho diversas experiências, pois fiz com profissionais, clínicas e hospitais diferentes.
Mas no geral, devo admitir, é um exame que me agrada, de certa forma. Como nunca tive nenhuma complicação traumatizante (apenas um braço levemente roxo - da agulhada - ou uma garganta um pouco arranhada), para mim vale o delicioso efeito grogue pós-exame.
Quando foi esse exame que você fez? Foi o único meeesmo? Ou criou coragem depois?
*Corrigindo o endereço do meu facebook! Acabo de descobrir que uma gringa tem os mesmos nome e sobrenome que eu, que coisa!
Tive crises de riso com seu texto (é o primeiro que leio aqui). Já fiz endoscopia umas 8 ou 10x. Tenho diversas experiências, pois fiz com profissionais, clínicas e hospitais diferentes.
Mas no geral, devo admitir, é um exame que me agrada, de certa forma. Como nunca tive nenhuma complicação traumatizante (apenas um braço levemente roxo - da agulhada - ou uma garganta um pouco arranhada), para mim vale o delicioso efeito grogue pós-exame.
Quando foi esse exame que você fez? Foi o único meeesmo? Ou criou coragem depois?
kkkkkk Rachei de rir Pedrão!! Esse tio fulando ai, diante da descrição, eu sei quem é!! Tempo que não o vejo, mas gente finissima!!! Grande abraço!!! Victor Santiago
kkkkkkkk, adorei!
Já passei por duas endoscopias. Uma para identificar o problema e outra para saber se o problema foi resolvido após o tratamento.
Diferente da sua experiência, me deram um "dopping" da pesada, pois funcionou em menos de 1 minuto e só acordei 30 minutos depois, em outra sala e exclamando para minha mãe:
- Mãe, segura aqui a parede...tá caindo na minha cabeça!
Me deixaram foi muito lerda!
Um boa tarde cinderela hospitalar!
Adorei a ideia do blog. Divulgue seus posts pelo Facebook, virei aqui sempre para me divertir!
Abraço
Alice
Muito bom ;)
Abraço, Diógenes.
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