Ah, bons tempos aqueles em que não existia a SET, Transalvador, ou seja lá como se chama esse suposto órgão que só serve para atrapalhar ainda mais o trânsito caótico da minha cidade. Além do tráfego fluir bem melhor, a inexistência desses acéfalos me permitiu uma grande regalia: dirigir a partir dos quinze anos.
Tá bom, tá bom, eu sei que não é politicamente correto, mas eu dirigia melhor do que a grande maioria dos baianos (o que não é lá muito difícil) e, se eu não pegasse no volante precocemente, não teria essa história para contar a vocês.
O ano era 1994 e eu iria completar 16 anos. No colégio, começou a circular uma história de que o Jardim dos Namorados, um espaço meio sem utilidade na orla de Salvador, com cara de estacionamento amplo em frente ao mar, abrigava durante a noite uma grande quantidade de casais em seus carros economizando no motel.
Sabem como é: adolescentes e idosos só sabem o que é sexo na teoria. Aliás, retiro o que disse. Hoje, graças à falta de pulso dos pais e de tantas facilidades, a pouca vergonha nunca começou tão cedo e, graças ao Viagra, nunca terminou tão tarde. Bom, o fato é que na minha época as coisas não eram tão fáceis assim. Portanto, saber que o povo testava os amortecedores dos carros no Jardim dos Namorados atiçava a curiosidade da gente.
Naqueles tempos, o carro lá de casa era um Ômega Suprema. Para quem não chegou a conhecer, o modelo mais parecia um carro funerário. Era grande, feio, comprido e tinha uma mala que cabia uns cinco caixões. Eu era coligado dos porteiros do meu prédio e, de vez em quando, esperava minha mãe dormir e “pegava o carro emprestado”.
E todo mundo sabe que dirigir é um poder incrível para um aspirante a homem. A gente se sente capaz de qualquer coisa. Eu mesmo achava mágico chegar no colégio aos sábados de manhã para fazer prova no Ômega Suprema. E olha que o carro era um Frankstein: horrível e instável. Tão instável que uma vez entrei mais rápido do que devia numa curva, perdi o controle da direção e quase caí com ele no Dique do Tororó. Pelo menos já estava dentro do carro funerário.
Enfim, estávamos na sala de aula, numa rodinha de meninos, comentando dessa tal história esquisita de motel sobre rodas. Eis que surgiu o plano:
- E se a gente fosse lá conferir esse negócio de perto? – sugeriu Firpo, um gordinho baixinho, sujeito gente boa, amigo nosso.
- Como, Firpo? A gente chega lá andando, um bando de homens, para na frente dos carros e fica assistindo? – manifestou-se Juninho.
- Claro que não. Pedro não vive pegando o carro? A gente vai nele... – Firpo tratou de colocar o Ômega Suprema no bolo.
- Ok, Firpo... eu não tenho mulher, você não tem mulher, Juninho não tem mulher, Pedro não tem mulher. Eu não vou virar seu par só para assistir o rala e rola dos outros no meio da rua. – impaciente, respondeu Cabrote.
Firpo, sem se dar por vencido, insistia:
- Calma. Ouvi dizer que muitos casais prendem um jornal na janela do carro para ter mais privacidade. Como se fossem cortinas, sabe? É só a gente chegar lá cheio de folhas de jornal que ninguém vai saber que só tem homem dentro do carro.
A turma, que antes não estava dando muita bola para o que parecia ser mera maluquice de adolescente tarado, começou a levar a ideia de Firpo a sério.
- Que dia você consegue pegar o carro? – Juninho me perguntou.
- É mais provável que eu consiga no sábado – respondi.
- Ótimo. É o dia do nosso jogo de futebol. De lá, seguimos para o Jardim dos Namorados. A propósito, não esqueça de levar a bola, Firpo – disse Cabrote.
- Deixa comigo. Vou levar também os jornais.
O som estridente da sirene do colégio anunciava que mais uma cansativa manhã de aulas no Anchieta havia terminado. Com pesadas mochilas mal acomodadas nas costas, o bando se dispersou.
Chegou o sábado. Diante da expectativa do grande acontecimento de logo mais à noite, o baba seguiu ainda mais displicente do que o usual. Após algumas caneladas e lances que superariam qualquer “Bola Murcha”, seguimos para o Jardim dos Namorados. No carro, apenas eu, Juninho, Cabrote, Firpo e folhas e mais folhas de jornais.
Ao nos aproximarmos do lugar, ficamos impressionados com a quantidade de carros apontados para a praia, como se um monte de gente estivesse ali apreciando o negrume do mar à noite, ou quem sabe até a lua debruçada no horizonte. Mas, muito menos romântico que isso, o espaço não passava de “transódromo municipal”. Os carros pareciam ter vida própria: cada um balançava num ritmo diferente do outro. Como o nosso não iria balançar, fiquei com medo de desconfiarem de nós. Pensamos até em ficar pulando no banco do carro para disfarçar.
- Vai, coloca logo os jornais nas janelas! – ordenou Juninho.
Firpo separava rapidamente as folhas e, afoito, as entregava para nós. Cada um tratou de baixar o vidro da sua janela para, logo em seguida, subi-lo prendendo o jornal.
Encontrar uma vaga foi tão fácil quanto estacionar no shopping em véspera de natal. Quase a ponto de desistir, conseguimos parar o carro entre uma caminhonete e um Fiat 147 - sim, um proprietário de um Fiat 147 tinha o mesmo direito de se divertir que um dono de um 4X4. O Jardim dos Namorados era, antes de qualquer coisa, democrático.
Depois da tensão inicial e com o carro totalmente vedado por páginas policiais, crônicas políticas, colunas sociais, classificados e até notas de falecimento, nos sentimos eufóricos ao vermos que a nossa ideia estava dando certo. Uma tentativa de comemoração mais exaltada foi rapidamente reprimida diante do medo de sermos descobertos. No mínimo, iam achar que se tratava de uma animada suruba homossexual – e dentro de um carro, para completar.
- E agora, como fazemos para ver o que está acontecendo lá fora? – perguntou Cabrote.
- É só fazer um furo bem pequeno no jornal de sua janela e olhar, animal. – prático e gentil, respondeu Juninho.
Rasgando poucos milímetros do papel com as pontas das unhas, inaugurei o meu observatório. Ao meu lado, no banco do carona, com extremo cuidado, Juninho fez o mesmo. Para mim, descortinou-se a cena de amor – se é que era esse o real sentimento – do casal da caminhonete. Para Juninho, ficou a empolgação que fazia o interior do Fiat 147 parecer ainda menor.
Para nós era simplesmente inacreditável que a suposta insanidade de Firpo estivesse dando certo. Estávamos ali, os quatro, testemunhando a cópula dos outros sem que eles nem desconfiassem. Eu só imaginava a resenha que faríamos depois no colégio - que acabou nos dando uma fama de mentirosos que durou até o vestibular.
Mas, o fato é que estava saindo tudo certo: cada um em uma janela, cada um com seu show particular. Foi então que, de repente, a mulher da caminhonete foi parando de se movimentar em cima do sujeito, ao tempo que olhava para o nosso carro com um semblante que combinava curiosidade e preocupação.
- Pessoal, acho que descobriram a gente... – murmurei apreensivo.
- Calma, não tem como, tá tudo vedado. – respondeu Juninho.
- Junior, você não está entendendo. A mulher parou de transar e está olhando pra cá. – respondi.
Eis que, diante da tensão e do início de agitação causados pela possibilidade de termos sido desmascarados, eu e Juninho olhamos para trás e, surpresa: Firpo havia feito em seu jornal dois grandes círculos para enxergar a cena. Ou seja, ao invés dos pequenos furos que nós fizemos, ele recortou duas bolas imensas no lugar dos olhos, como se fosse uma máscara de carnaval. Só faltou colocar também o nariz e a boca. Por milésimos de segundo, imaginei o corta-clima que foi para a mulher olhar para nosso carro e ver, através de dois buracos descomunais num jornal, um par de olhos esbugalhados fitando ela.
A mulher deu um pinote de cima do cara e, protegendo com uma das mãos suas vergonhas, com a outra, apontou aflita para a janela de Firpo. Seu companheiro, que parecia visitar uma outra dimensão, voltou a si abruptamente como um hipnotizado que recebe um estalo no ouvido para sair do transe. Com o semblante de relaxamento dando lugar a uma cara de poucos amigos, o sujeito achou os olhos de Firpo que, insistente, não os tirava de dentro dos buracos enormes da folha de jornal.
Foi então que o caos se instaurou dentro do ômega suprema.
- Vai, liga o carro! Liga o carro! – gritava Cabrote.
O parceiro da mulher, nervoso, ensaiava uma saída de dentro da caminhonete. Para nossa sorte, suas calças à meia perna não permitiam tamanho movimento. Àquela altura, Juninho unia-se a Cabrote nos tapas em minhas costas e nos sucessivos gritos de “vai!”. Apenas Firpo continuava imóvel, catatônico, com os olhos colados na janela.
Movido pelo desespero, consegui ligar a chave. O carro, engrenado, deu um pulo pra frente e morreu. “Vai! Vai!”. Consegui pisar o pé na embreagem e o motor ligou. Engatei a ré às pressas e acelerei sem me dar ao luxo de ver se vinha algum carro atrás. Por sorte, não vinha. Ao deixarmos a vaga, tenho quase certeza de que Firpo, através do seu jornal, ainda conseguiu ver o sujeito se embolando com sua própria calça ao sair da caminhonete.
Quando eu lembro desta verdadeira odisséia que tivemos que passar para ver uma, digamos assim, manifestação sexual leve, me convenço de que a minha geração adolescente foi a última felizarda a ter que usar a criatividade para ter acesso a este fantástico mundo proibido. E tiveram períodos ainda piores. Como diz Tio Fulano, “na minha época, a gente se excitava vendo tornozelos. O resto do enredo tínhamos que criar todo na cabeça”. Hoje, esses meninos amarelos de computador já não exercitam mais a imaginação – apertam um simples botão e... puf! Pornografia. Sinto muito por eles: jamais vão ter a oportunidade de testemunhar um Firpo em estado pré-autista pelo simples fato de conseguir ver, ainda que de longe, um peito pela primeira vez.