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– Wikipédia.
Há mais de 10 anos sou devoto de Santo Antônio, o glorioso santo português. Fato este que, quando descoberto por amigos, automaticamente traz a reboque uma pergunta:
“você quer casar, é?”. Antes que você também pergunte, já vou respondendo: não é por desespero de subir ao altar que sou devoto deste grande intercessor dos céus. Até porque, há 10 anos atrás eu tinha 20 anos e a última coisa que eu pensava àquela época era casamento. Quem sabe daqui a uns 5 anos, se eu ainda não estiver casado, minha devoção não ganha um novo viés?
O fato é que nunca se ouviu dizer de alguém que tenha recorrido a este poderoso santo e tenha sido esquecido. Abandonando a riqueza e dedicando-se à caridade, sua breve vida na terra foi marcada por inúmeros milagres. Entre eles, a visão que um conde que hospedava Santo Antônio teve: curioso para ver o famoso frei orando, o nobre, espreitando através de uma fresta que existia na porta do seu quarto, assistiu maravilhado ao cômodo inteiro resplandecer e Nossa Senhora, cheia de júbilo, entregar nas mãos do santo o Menino Jesus.
É por isso que, em quase todas as representações de Santo Antônio, ele está carregando no colo uma criança. Sendo assim, acho inconcebível que alguém, hereticamente, separe os dois para arrumar um namorado, um noivo ou algo do tipo. Principalmente se isso for feito em alguma de minhas imagens deste grande protetor dos pobres.
Pois chego eu em casa esta semana e, ao entrar no meu quarto, notei algo de muito estranho: o meu mais valioso Santo Antônio – valioso por ser antigo e mais valioso ainda por ter pertencido à minha avó – de costas, virado para a parede. Na mesma hora lembrei que esta era uma das inúmeras simpatias que as pessoas costumam fazer para desencalhar. Resumindo, ou algum espírito de porco resolveu fazer piadinha comigo ou aquilo era obra de uma das 4 mulheres de minha casa – todas solteiras.
Segurei no aveludado hábito azul da imagem e virei o santo para a sua posição original. Quando ele estava de frente pra mim, o susto aumentou: o Menino Jesus havia sumido das mãos de Santo Antônio. “Alguém está desesperado, fez duas simpatias ao mesmo tempo para garantir o fim da solteirisse”. – pensei.
Fiquei angustiado. Onde estaria a bela imagem da criança? Será que caiu no chão? Será que quem escondeu lembra onde colocou? A vontade que eu tinha era de acordar todo mundo para perguntar sobre o paradeiro do Menino Jesus. Mas eram 3 da manhã de um dia de semana. E o pior é que eu não iria conseguir dormir fácil, estava perturbado com a história. Revirei meu quarto do avesso e nada.
De repente, ouvi um barulho no banheiro do corredor. Corri para a porta e fiquei esperando a ocupante do lugar sair. Era minha irmã.
- Lica, por acaso você pegou o Menino Jesus de meu Santo Antônio? – perguntei.
Pela cara que ela fez de “não entendi nada”, automaticamente a isentei de qualquer culpa. Procurei explicar:
- Cheguei no quarto e encontrei o santo virado para a parede e sem o Menino Jesus nos braços. Alguém aplicou no santo, de uma só vez, duas simpatias de casamento.
Ela disse que não era a responsável pelo sumiço e que também achava difícil que tivesse sido Simone, nossa outra irmã.
- Ontem eu vi a gata andando por esta prateleira. Será que ela esbarrou nele? – disse Livinha enquanto analisava a cena do crime.
- Sua gata é esperta, Lica. Mas não o bastante para fazer simpatias. Agora falando sério, será que ela engoliu o Menino Jesus? – cogitei o pior.
- Não, não, deve estar por aqui em algum lugar. – respondeu Livinha, tentando evitar que eu dissecasse a barriga de seu animalzinho.
3:30 da manhã e a gente arrastando cama, criado-mudo, armário; remexendo livros e mais livros na prateleira. Nada da pequenina imagem. Antes que todos os vizinhos do prédio nos linchassem, resolvemos dormir e continuar a busca no dia seguinte. Deitei e, antes de pegar no sono, fiz uma prece, pedi para que meu santo advogasse em causa própria:
- Poderoso e fiel Antônio, guardião de todas as horas, meu prodigioso intercessor junto a Deus, rogo-te: vós que sempre encontrais o perdido, clareais o oculto e que me fazeis orar no presente do indicativo, ajudais no reaparecimento da imagem do amado Menino Jesus. Que ainda esta manhã Ele apareça e volte definitivamente para vossas mãos. Amém.
Acordei e, antes mesmo de tomar banho e escovar os dentes, corri até a cozinha em busca de notícias do bem-aventurado filho de Maria. Ao perguntar se alguém tinha encontrado a imagem em algum lugar, todos riram: Rosa, a jovem e tímida empregada da casa, no dia anterior foi limpar meu quarto e encontrou o Menino Jesus entre o colchão e a lateral da cama. Pensando ela que se tratava de uma simpatia minha, arrumou a cama e, cuidadosamente, recolocou a pequena imagem embaixo do colchão. Afinal, macumba e simpatia há de se respeitar.
Como ninguém assumiu a autoria do seqüestro do primogênito de Deus, nos restou aceitar a teoria da gata andando pela prateleira, girando a imagem ao passar por ela e derrubando o Menino Jesus entre o colchão e a cama.
Acaso? Um sinal dos céus? Prenúncio divino de um desencalhe? Não sei. De qualquer modo, fica a minha particular leitura do ocorrido: hoje em dia, o que não faltam por aí são gatas doidas pra casar. De quatro patas ou duas pernas.