quinta-feira, julho 12, 2012

O Pesadelo de Odete (ou ”A Touca Voadora”).

Bom, se você tem estômago fraco, é cardíaco, tem bom senso estético literário, é do tipo que sente nojo com facilidade, é sensível, mulher fresca, torce para o São Paulo, é de Campinas, Pelotas ou é gaúcho da fronteira, melhor não ler essa história.

Ok, se continuou, é porque está apto e disposto a ouví-la. Depois, não vá colocar recadinho aí embaixo do tipo: “Pedro, como você é nojento...”, “não conhecia esse lado seu”, “vou te excluir do Orkut”. Cada um lê o que quer, não é? Tem gente até que lê Veja.

Vamos lá.

Um belo dia, uma amiga me contou uma história difícil de acreditar. Por dois motivos: pelo enredo propriamente dito e pela coragem em contar para um amigo homem o que se passou. Aliás, para contar a qualquer ser humano. Para não expô-la, daqui para frente, seu nome será Odete.

Advogada, Odete havia acabado de mudar de escritório e vivia um momento especial, um momento de grande felicidade. Felicidade pelo novo emprego, por estar respirando novos ares, pelas perspectivas que ela enxergava à sua frente, pelo clima bacana do trabalho, pelas colegas que eram legais e, também – ou principalmente -, pela quantidade de caras bonitos e interessantes trabalhando por lá. (Palavras dela).

Então, ainda na sua primeira semana de trabalho, aconteceu a festa de fim de ano do escritório. A turma, muito unida e entrosada, combinou um “esquente” na casa de uma das meninas que, gentilmente, fez questão da presença de nossa protagonista. A ideia era irem todas para lá depois do trabalho, tomarem banho no apartamento da garota, colocarem seus vestidos de gala e então beberem e socializarem com os rapazes do escritório que chegariam logo em seguida.

Assim foi combinado, assim foi feito. Na hora do almoço, Odete correu até o salão, fez escova, fez as unhas e cuidadosamente escolheu o vestido para aquela ocasião. Era um vestido preto, longo, esguio, matador. Escolhido estrategicamente para que ela demarcasse de vez o seu território no novo trabalho e na cabeça dos novos colegas.

Naquela noite, na casa da garota, Odete foi a última das meninas a terminar de se arrumar. Estava nitidamente caprichando, queria todos os holofotes para si.

Então, após muita demora, saiu Odete de dentro do banheiro. Demorou tanto que, ao sair, todos os homens já estavam lá (a conhecendo como conheço, posso afirmar que este seu atraso foi planejado). Passou por eles, mexeu no cabelo, provocou e teve a atenção que buscava. Como uma plateia de jogo de tênis diante da bola, de maneira sincronizada, todos torceram o pescoço para acompanhar sua passagem.  Odete não é publicitária, mas soube valorizar a sua imagem.

Quarta garrafa de prosseco aberta. A conversa rolava solta, a troca de olhares, também. Então, eis que acontece o inesperado: de repente, Odete foi surpreendida com uma pontada aguda na barriga, prenúncio de uma urgência intestinal. Tratava-se de um evento inadiável. A partir dali, Odete sorria para os presentes um sorriso sem cor. Os olhos haviam perdido o brilho, tornaram-se opacos. As contrações abdominais a consumiam.

Isto seria apenas um intercurso fisiológico superável, mas havia um pequeno problema: ela estava em um pequeno loft com apenas um banheiro e todo mundo no mesmo ambiente. Ou seja, todos saberiam exatamente a hora que ela entraria e a hora que sairia. Sessenta segundos lá dentro, número 1. Mais do que isso, número 2.

Como não havia mais jeito, Odete resolveu agir rápido. Seguiu para o banheiro e, lá, fez o que tinha que fazer. Tentou agilizar o máximo possível, cumpriu o ritual com perícia e rapidez de quem desarma uma bomba-relógio com o contador chegando ao zero. Não entrarei em detalhes por motivos óbvios. Mas, posso dizer que, cumprida a missão, Odete mirou o vaso e estranhou: ao contrário do que anunciavam as cólicas, havia solidez e densidade no produto final de seus esforços.

Feliz com seu rápido desempenho, ela se levantou e apertou a descarga. E foi aí que iniciou-se o pesadelo de Odete.

No vaso sanitário, a água fez seu clássico redemoinho e desceu tubulação abaixo. Tudo sairia perfeito, não fosse um detalhe: somente a água desceu. Imprensada entre duas paredes de porcelana, a obra-prima de Odete ficou ali, presa. Imediatamente, sua mão foi em direção à descarga novamente, mas, pensou um pouco e desistiu: se apertasse outra vez, as pessoas ouviriam o barulho e, diante de duas descargas consecutivas, deduziriam o sufoco que Odete enfrentava.

A cabeça de Odete trabalhava. O que fazer? Nossa protagonista tinha cada vez menos tempo para que as pessoas pensassem que aqueles minutos investidos no banheiro não passavam de um charmoso xixi, fruto de duas taças de prosseco. Odete olhava para um lado, olhava para o outro, olhava o teto, olhava o chão. “Pensa rápido, Odete, pensa!”. Foi então que Odete, mulher de muita ação e pouca divagação, achou um jeito de resolver o seu problema: remover dali o emperrado objeto.

Não. Apesar do desespero, Odete não estava disposta a retirar aquilo com as mãos. Pensou em papel higiênico, mas concluiu que ele se dissolveria rapidamente na água. Toalha? Também inviável: por conta do tecido grosso, não conseguiria a sensibilidade nas mãos necessária para a manobra exigida - sem contar que, se Odete mal tinha tempo para pensar, quem dirá lavar toalha dos outros. O ideal para a operação de remoção seria uma luva de borracha, pensou. 

Discreta, grande respeitadora da privacidade alheia, Odete feriu seus princípios. Com certo vigor, foi abrindo gavetas e armários, um por um. Nem sinal de luva de borracha. À sua frente, apenas artigos de maquiagem, anéis, brincos, pulseiras, uma escova de dente e algumas caixas de remédio. Então, ao fechar um dos armários, à sua frente, pendurada no registro de água, descortinou-se a sua salvação: uma touca de banho. Uma linda e diferenciada touca de banho rosa.

Odete estava disposta a sacrificar a touca de sua amiga. Pela primeira vez em sua vida, iria subtrair um bem. Não deu tempo de sua consciência se manifestar: rapidamente, pegou aquele pedaço de lona fina, vestiu a mão da forma que deu e a submergiu em direção ao compactado bloco de cimento orgânico. Com muita destreza manual, perícia e sangue frio – quase um ato cirúrgico – Odete conseguiu desencaixar um dos lados do hipertrofiado dejeto e, em segundos, ele encontrava-se na palma de sua mão.

Diante de uma consistência que ela descreveu ser entre uma massa crua de pão e uma gelatina, o objeto pedia habilidade para manter-se intacto, sem partir ao meio, dividindo-se em duas grandes sujeiras no chão do banheiro. Olhou para o lixo e, graças ao bom senso, não lhe pareceu uma boa ideia. Restava apenas uma opção: o basculante do box do banheiro.

Foi aí que Odete, tal qual uma atleta olímpica de arremesso de peso, elevou a mão direita e correu com aquele cilindro de pontas arredondadas, tremulando, flexível. Com um chute, escancarou a porta do box e então lançou, vencedora, o coco e a touca, os dois embolando-se no ar, unidos, ao sabor do vento, rumo ao chão.

O peso do mundo foi removido dos ombros de Odete. Sorria, sozinha, naquele cubículo, sem conseguir acreditar que havia se livrado de tamanho problema. Abraçou novamente a alegria. Mas queria, urgente, sair daquele banheiro. E assim o fez. Antes, mexeu no cabelo em frente ao espelho, abriu a porta e saiu leve. Nenhum olhar estranho para ela. Talvez tivessem imaginado que o tempo a mais em que esteve ausente havia sido por motivos femininos: retocar maquiagem, cabelo, olhar 20 vezes no espelho, etc.

Alívio, essa era a palavra. No âmbito fisiológico, no âmbito psicológico. Odete, agora livre das amarras do constrangimento, só queria diversão. Rapidamente, retomando sua taça, engatou numa empolgada conversa, gesticulava, atropelava palavras, ria largamente, e fechava os olhos, e jogava a cabeça para trás. Até que alguém disse que era hora de irem e desceram todos.

No elevador, Odete ainda ria muito e fazia rir em igual proporção. Intimamente, celebrava com extrema simpatia e carisma a sua vitória diante de uma batalha que parecia perdida. A porta se abriu e caminharam pelo térreo em direção ao portão do prédio. Com a atitude clássica dos vencedores, serena mas cheia de satisfação, Odete elevou os olhos ao céu e então, surpresa, vislumbrou, no alto de uma mangueira, ao lado de um cacho de mangas, um incomum fruto rosa.

E, nesta noite agradável de lua crescente e brisa leve, enquanto todos passavam por baixo daquela grande copa de árvore, Odete, jamais em toda a vida, torceu tanto para que uma fruta não caísse do pé.